terça-feira, 4 de dezembro de 2012

Hamlet por Lacan

O DESEJO E SUA INTERPRETAÇÃO – HAMLET POR LACAN “A hora do encontro é também despedida” Freud situou o drama de Hamlet com os mesmos ingredientes trazidos pela tragédia de Édipo-Rei, girando em torno do desejo parricida e amor incestuoso pela mãe. No entanto, destaca que, por conta da distância temporal, são distintos os modos de tratamento dado por cada época: no Édipo, a fantasia é atuada em cena, enquanto que em Hamlet os desejos e a fantasia estão recalcados. O complexo de Édipo aparece na obra de Freud em 1900 como o lugar onde se ordena o desejo. Wunsch é voto, desejo. A etimologia da palavra remete a Vênus, Wahn, esperança, espera. Do latim: vanus, ou VAZIO. A descoberta de Freud de uma vida psíquica inconsciente dotada de sonhos, chistes, sintomas e atos falhos, demonstram que o sujeito é constituído pelo efeito dos significantes no corpo. Hamlet, Príncipe da Dinamarca, filho único e herdeiro do trono, fica sabendo, através da aparição do espectro de seu pai, que seu tio o assassinou para conquistar a coroa e casar-se com sua mãe. A fim de avaliar a veracidade dos fatos, Hamlet finge-se de louco, despistando a Corte e mesmo a mulher que ama, Ofélia, filha de Polônio, conselheiro do Rei. Por ocasião da chegada de uma trupe de atores, Hamlet busca a verdade, testando o rei com o exemplo clássico do metateatro, fazendo representar uma peça semelhante à situação narrada pelo fantasma. A reação do rei, confirmada por Horácio (único que pode compartilhar com Hamlet o segredo da morte do pai), atesta a veracidade do testemunho paterno, de maneira que Hamlet fica seguro para a execução do seu ato de vingança. A oportunidade surge em seguida, depois do espetáculo, quando ele surpreende o tio ajoelhado, rezando. Porém, Hamlet, temendo prestar-lhe um favor e enviá-lo para a salvação eterna, desiste de concretizar naquele momento sua vingança. Depois, junto à mãe, buscando persuadi-la da verdade, vê chegada a hora para a vingança quando supõe ser o rei escondido atrás das cortinas, escutando a conversa. Todavia, engana-se, matando Polônio, pai de Ofélia. Daí nova aparição do espectro cobrando a postergada vingança. Por determinação do rei, sabendo que está em perigo, envia Hamlet para a Inglaterra, mas na verdade é uma cilada preparada pelo tio para dar cabo de sua vida. Mais uma vez, Hamlet consegue retornar à Dinamarca para tentar executar seu ato de vingança. Mas é interceptado no caminho pelo enterro de Ofélia que enlouquecera e se afogara após a morte do pai. Laertes, exigindo justiça diante do assassinato do pai, instruído pelo rei, se propõe a duelar com Hamlet, com a ponta do florete envenenada. Hamlet e Laertes são feridos enquanto a rainha agoniza por ter bebido uma taça envenenada destinada ao filho. Antes de morrer porém, ela e Laertes acusam o rei e enfim, Hamlet o mata. Porém ele também, agora moribundo, agoniza, depois de ter recebido o perdão de Laertes, suplica a Horácio que sobreviva para narrar ao mundo a verdade e limpar sua honra. Hamlet ainda tem tempo de organizar o destino da coroa dinamarquesa que deverá passar ao herdeiro da Noruega, Fortimbrás, que chega de uma campanha vitoriosa da Polônia. Na literatura, essa tragédia está classificada como “tragédia de vingança”, sendo aqui vingança, sinônimo de justiça, de busca da verdade. Hamlet, um intelectual e acossado pela dúvida, faz com que a tragédia seja permeada pelo dilema, daí poder ser nomeada como tragédia da inteligência. Opondo-se a Goethe para quem Hamlet é o tipo de homem cujo poder de ação é paralisado pelo desenvolvimento excessivo de seu intelecto, paralisado pelo pensamento, Freud afirma ”que Hamlet está longe de ser representado como uma pessoa incapaz de adotar qualquer ação, mas uma inibição lhe impede de cumprir a tarefa imposta pelo fantasma do pai”. Ele não consegue se vingar de Claudius, sem revelar seu desejo recalcado de matar o pai. Ou seja, a inibição de Hamlet denuncia sua problemática de culpabilidade e escrúpulos de consciência, uma vez que se iguala a seu rival pelo desejo edípico. O remorso que paralisa e impede Hamlet de agir é porque o tio se torna um RIVAL, e , ao mesmo tempo IGUAL, pois realiza seu desejo secreto.(a----------a’) Trata-se da dialética do espelhamento. Ele é inocente e culpado ao mesmo tempo = inocente porque tem o dever de restaurar a ordem e culpado porque deseja inconscientemente o lugar do tio. A peça inicia com o encontro dos amigos: Horácio, que diz: “Eu vim para assistir aos funerais do seu pai” ao que Hamlet responde “Ou seja, veio ao casamento de minha mãe”. Duas ocasiões muito próximas: a morte misteriosa do rei e o casamento quase que imediato de sua mulher com o cunhado. Por isso, a ira de Hamlet: “Economia, Horácio! Os assados do velório puderam ser servidos como frios na mesa nupcial. Preferia ter encontrado no céu meu pior inimigo do que ter visto esse dia!” Quando aparece o fantasma do pai que revela a versão mentirosa de que dormia no jardim quando foi picado por uma serpente e que na verdade foi assassinado por meio de um veneno inoculado no ouvido, pelo próprio irmão que lhe toma ao mesmo tempo: a coroa, a rainha e a vida, a peça vai consistir em contornar as hesitações de Hamlet em cumprir o supereu paterno: “Se você algum dia amou seu pai ... vinga esse infame assassino” ao que responde:“Mais rápido do que um pensamento de amor”. No entanto, Hamlet não consegue cumprir o pedido paterno e fica dando voltas em hesitações e postergações até o ato final. O que a peça acentua é a posição de Hamlet como lugar vazio, de espera... Lacan, no Seminário VI “O desejo e sua interpretação”, pergunta: “ O que quis dizer Freud trazendo-nos Hamlet?” A distinção entre Hamlet como paradigma do herói moderno em contraste com o herói-trágico Lacan da antiguidade, Édipo, seria sua posição em relação ao saber: enquanto em Édipo os desejos aparecem e são realizados, porque ele nada sabia; em Hamlet, esses mesmos desejos estão recalcados e ele sabe, por isso ele não age, vacila. O horror que deveria impulsioná-lo para vingar o pai provoca uma elaboração sintomática – remorsos e escrúpulos. Lacan diz que há uma correlação entre o não-saber do Outro e a constituição do inconsciente do sujeito. Não há desejo sem Outro, porque o sujeito é desamparado e é para além das necessidades que ele pode receber a s(A). No ato II, cena 1, Ofélia, mulher por quem Hamlet estava apaixonado e era correspondido, relata ao pai, Polônio, o DES-encontro com o amado: “...Hamlet me surgiu. Com o gibão todo aberto, sem o chapéu na cabeça, os cabelos desfeitos. As meias sujas, sem ligas, caídas pelos tornozelos. Branco como a camisa que vestia. Os joelhos batendo um contra o outro, E o olhar apavorado de quem foi solto do inferno. Pra vir contar cá em cima os horrores que viu... “Me pegou pelo pulso e me apertou com força. Depois se afastou à distância de um braço E, com a outra mão na fronte, Ficou olhando meu rosto com intensidade, Como se quisesse gravá-lo... E aí me soltou. Com a cabeça virada para trás foi andando pra frente como um cego, atravessando a porta sem olhar, os olhos fixos em mim, até o fim”. Ou seja, Hamlet “enlouquece” com o destino que lhe reserva o saber, abandona as coisas do mundo, Ofélia inclusive, como objeto amado, para se fixar na idéia de vingança e define essa loucura de saber como: “Há mais coisas no céu e na terra, Horácio, do que sonha a tua filosofia”. Horácio nomeia essa angústia do amigo como “algo de podre no reino da Dinamarca”. Na verdade, compreendemos que, como toda tragédia, o equilíbrio foi rompido e o herói deve introduzir a ordem, restabelecendo a harmonia, a nêmesis. O gênero trágico determina a imolação do herói, num ritual de sacrifício que vem do culto de Dionísio, para se obter uma purificação para a preservação dos valores éticos. Para Lacan o importante de seu método é a possibilidade de separar as fibras homólogas da estrutura nas duas fases: • De Édipo • De Hamlet Ele separa os atos dos dois heróis, afirmando que as criações poéticas engendram as criações psicológicas: Hamlet – culpado de ser/ crime de existir/ ser ou não ser seu ato só se realiza in extremis, pq o Outro sabe; Édipo – nada sabe/melhor seria não ter nascido O pai sabe que está morto e, se o Outro sabe, o sujeito não se realiza como faltante, pois esse Outro não está marcado pela falta. Hamlet no seu encontro com o pai-fantasma não encontra o significante do Outro barrado que lhe permitiria aceder a significação do desejo do Outro e a falta no campo significante. Falta a Hamlet a transmissão da castração. Para Hamlet difícil entender porque a mãe não faz luto do marido, então, qual a verdade de seu desejo? Aquilo com que Hamlet se debate o tempo todo é o desejo de sua mãe: “Quem era seu pai para sua mãe, substituído de um dia para outro pelo irmão? No ato III, na cena com a rainha, ele pede: retome o caminho dos bons costumes, comece deixando de deitar-se com meu tio... e todo mundo sabe que o apetite vem na medida em que se come; esse demônio – o hábito é o que nos liga às piores coisas...” Ou seja, em nome da dignidade, ele articula uma demanda ao Outro materno. Hamlet de Shakspeare teria de vingar o assassinato do pai e ainda, deter a luxúria da mãe. Nesse sentido é que Lacan situa a tragédia no grafo do desejo apontando que Hamlet só pode receber como mensagem, o que está no andar inferior do grafo: o significado do Outro, um Outro não barrado. A mãe como uma boceta aberta, quando um partiu, o outro chega ... “eu não conheço o luto”. Se Gertrudes tem esse apetite insaciável, não permitindo ao filho aceder ao desejo, porque não coloca o filho como objeto amado, passível de se questionar sobre “o que o Outro quer de mim?”,ao casar com o cunhado, deserda o filho do trono que lhe cabia legitimamente e o falo (a coroa) que não mais será transmitido de pai para filho. Por outro lado, um pai que clama por vingança e que denuncia que morreu na “flor dos pecados” não é um pai que sustenta a articulação do desejo com a lei, pelo contrário, transfere ao filho o peso dos pecados, ao que Hamlet responde: “Maldita a sina. Que me fez nascer um dia pra consertá-lo!” De privador do gozo da mãe se torna seu cúmplice porque não compromete a mulher em seu assassinato. Diferentemente de Édipo onde o S(A/) é encanado pelo pai, autor da lei, que abre a pergunta: Onde está o crime? Onde está o culpado? Édipo paga a dívida do pai, ainda que com o destino trágico. Ou seja, o ser falante, tem de fazer o luto do falo. Lacan diz: “ no momento do desenlace final de suas exigências edipianas, vendo-se castrado, privado da coisa, o sujeito prefere abandonar uma parte de si mesmo, que será, a partira de então, para sempre interdita, formando a cadeia significante.” Hamlet se expressa em seu to be or not...? e permanecerá embaraçado no campo do desejo. Nesse sentido a peça também apresenta o drama da subjetividade. Ele estará sempre na hora do Outro: o encontro é cedo demais e quando age é por precipitação. Esse jogo com a hora do encontro. Se Édipo não hesita 36 vezes diante do ato é porque ele age antes de pensar e SEM SABER – o ‘não sabido’ é a estrutura essencial no Édipo: “bem aventurada ignorância daqueles que estão imersos no drama pelo fato de que o $ que fala está submetido ao significante”. O problema é que Hamlet SABIA! Eis a condenação! O pai sabe = Hamlet sabe = s(A) A experiência da análise ensina que “não sou aquele que penso que sou”, pela simples razão que não há no Outro nenhum significante que possa responder ‘o que sou’. É a função enigmática do falo = o significante escondido, aquele que o Outro não dispõe. O desejo deve ser situado sobre a linha A---- ($ ^ D), encontra seu suporte, sua regulação imaginária. Falta a Hamlet situar um objetivo a pergunta ao Outro. É na medida em que o sujeito está privado desse significante que um objeto se torna objeto de desejo. Eis o que significa ($^a) = o que tratamos na análise é de percorrer a cadeia significante e o curtocircuito imaginário entre d e a no ($^a): Hamlet não pode suportar o luto de Laertes, um luto transbordante que ele não pode estampar por Ofélia. Quando ele assume esse luto, novamente na dialética do espelhamento, através de uma posição homóloga – só então, diz Lacan, ele pode reencontrar o homem, capaz de amar, lutar e matar! Laertes é o suporte, exemplo, para que Hamlet recupere seu desejo, através do ciúme do luto. Os outros pensam em cativar Hamlet com objetos de coleção – seis cavalos berberes, seis espadas francesas, (como os gadgets da vida moderna), mas se enganam, porque do que se trata é de uma relação especular i(a)-----m, a imagem do outro absorve completamente aquele que a contempla. É a ostentação do luto que Hamlet coloca seu desespero do amor por Ofélia, aqui já na condição de falo perdido: “O amor de 40 mil irmãos somado, não conseguiria ultrapassar o que sentia por ela”. É a reconstituição do objeto do desejo, na possibilidade de luto do objeto perdido. O objeto a na fantasia vai de agora em diante, sustentar a relação do sujeito ao que ele não é: o FALO. a = efeito da castração, marco opaco, termo obscuro, o nada que vai buscar a sombra de sua vida inicialmente perdida. A encenação de Hamlet se aproxima da de Édipo porque se organizam em torno do complexo de castração e do Nome-do-Pai como articulador da lei e do simbólico. Lacan marca, durante esse Seminário que é contemporâneo da Significação do Falo e De uma questão preliminar, a passagem do eixo imaginário – m.....i(a) – o falo capturado nessa relação especular, narcísica, para o registro simbólico, quando Hamlet pode desenhar seu gancho interrogante do Grafo do desejo e colocar em cena seu enigma de sujeito a partir da simbolização do luto: perda de Ofélia = perda radical do falo. Hamlet pode então reencontrar na palavra – linguagem, não mais fingindo loucura - seu drama subjetivo e demasiadamente humano. Encontrar em Hamlet uma placa giratória onde se situa um desejo é a proposta de Lacan, porque tanto se pode identificar nele um histérico, de desejo insatisfeito, ou um obsessivo, com desejo impossível. Mas Lacan é claro: Hamlet não é um obsessivo porque é uma criação poética, ele não TEM uma neurose, ele nos demonstra a neurose. A tragédia de Hamlet é apresentada como um drama do desejo e a concepção de mundo como ambigüidade, em constante mutação e negação da univocidade. Isso tem um efeito de apaziguamento e desvencilhamento da angústia, que nos alivia pela catarse e produção do prazer através da projeção. Isso quer dizer que, se nos emocionamos numa peça de teatro é por conta do lugar que ela se oferece para brindarmos nossa relação com o desejo. Também os atores que interpretam Hamlet, trazem a dimensão (lugar vazio para situar nossa ignorância = presentificação do inconsciente) da relação tecida pelo nosso imaginário, por nossa relação com nosso corpo: “É com nossos membros – o Imaginário – que fazemos o alfabeto desse discurso que é inconsciente, cada um de nós em relações diversas...da mesma forma que o ator empresta seus membros, sua presença, não como marionete, mas com seu inconsciente bem real”. Além da psicopatologia da vida cotidiana, Shakespeare ensina que na prática analítica do que se trata é do impasse com o desejo e as saídas possíveis a cada caso. Só podemos calcular os efeitos de uma análise, retroativamente, a partir do que ficou depositado da lógica da fantasia para aquele sujeito particular. Por isso são necessárias infinitas voltas e contornos a fim de depurar o fixado, imutável, sob o artifício da neurose de transferência.

Um comentário:

  1. Adorei, estive estudando a lição 19 do Seminário VI e sua postagem contribui e muito para minha compreensão.

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