quinta-feira, 13 de dezembro de 2012

meu livro




PSICOLOGIA JURÍDICA: LUGAR DE PALAVRAS AUSENTES

Alba Abreu Lima
Reúne Alba Abreu Lima, em primorosa obra, vários estudos de Psicologia Jurídica que permitem uma percepção por parte dos operadores do Direito do que está subjacente a muitos litígios judiciais, especialmente no campo do Direito de Família.Com efeito, a autora analisa as novas formas de sexualidade e de família, à luz da Psicanálise. Incursiona pela guarda compartilhada como forma de melhor atender ao interesse da criança, princípio hoje consagrado não só no ordenamento jurídico interno, mas também em convenções internacionais.

quarta-feira, 12 de dezembro de 2012

Lista de ano novo: um amor novo

            
Resoluções do ano novo: um novo amor
                                                     Alba Abreu Lima
“Quando damos as mãos, somos um barco feito de oceano, a agitar-se sobre as ondas, mas ancorado ao oceano pelo próprio oceano”.
José Luis Peixoto
               

Nas listinhas de fim de ano escutamos que as pessoas querem um amor novo ou um novo modo de se relacionar com o parceiro amoroso. Metas para cumprir, um mapa traçado de como a vida poderia ser mais prazerosa, incluindo um parceiro perfeito! O problema é que o ano passa, a lista fica e no ano seguinte repete-se tudo de novo com a esperança de que os desejos possam ser atendidos. Esquecemos que nossas escolhas são determinadas como desígnios que tem relação com o inconsciente e por vezes nos culpamos por não termos cumprido nossas boas intenções!
Na psicanálise, o tema da escolha amorosa provoca debates intermináveis e o começo de tudo está um pouquinho distante, nas nossas primeiras escolhas amorosas e o modo como nos constituímos em relação a uma falta que é de estrutura.
 Freud considera que a ciência não pode se abster de se ocupar das condições necessárias ao amor que determinam a escolha de objeto feita pelas pessoas. Ele aponta o amor como o investimento do Eu no objeto. Ele afirma na Quarta Lição:
 “É absolutamente normal e inevitável que a criança faça dos pais o objeto da primeira escolha amorosa. Porém a libido não permanece fixa neste primeiro objeto: posteriormente o tomará apenas como modelo, passando dele para pessoas estranhas, na ocasião da escolha definitiva”.
Todas as relações amorosas passam pelo modo de articulação psíquica que Freud chamou de complexo de Édipo. Todos os amores seriam aparelhados, abalizados e apoiados (Anlehnung) na organização das pulsões, que nada a ver com a teoria psicológica desenvolvimentista. A teoria da constituição do sujeito tem por fundamento a noção de desejo (falta), e se estrutura a partir do estudo da linguagem e de seus efeitos no ser humano.
        Em 1932, Freud admite um dualismo numa carta a Einstein:
 “De acordo com nossa hipótese, as pulsões humanas são de apenas dois tipos: aquelas que tendem a preservar e a unir — que denominamos ‘eróticas’, exatamente no mesmo sentido em que Platão usa a palavra ‘Eros’ em seu Symposium, ou ‘sexuais’, com uma deliberada ampliação da concepção popular de ‘sexualidade’ —; e aquelas que tendem a destruir e matar, as quais agrupamos como pulsão agressiva ou destrutiva”.
Em 1937, em "Análise terminável e interminável", Freud avança na fusão de Eros e tânatus:
 "Sei muito bem que a teoria dualista que pretende instaurar uma pulsão de morte, de destruição ou de agressão como parceira legítima ao lado de Eros, manifestando-se na libido, encontrou de maneira geral pouco eco, e não chegou a se impor verdadeiramente, mesmo entre os psicanalistas" (1937).

Portanto, a pulsão agressiva e a pulsão de vida estariam legitimamente unidas e esse é o complicador dos impulsos humanos! Nossos desejos são regidos por esse amálgama Eros/tanatus e muitas vezes aparentemente o que mais desejaríamos seria, no fundo do coração, o que gostaríamos que estivesse bem longe de nós!
Em geral, quando falamos vida amorosa, designamos ao mesmo tempo três termos - amor, desejo e gozo - que Lacan diferencia quando afirma no Seminário X: “o amor é o que permite ao desejo que conceda o gozo”. O amor estaria com a responsabilidade de fazer a concessão, de suprir a relação sexual que não se pode escrever. O amor se apóia no encontro faltoso do sujeito com a sexualidade, tentando anular a falta original do desejo, esteio da insatisfação.
 Podemos verificar que o amor se distingue do gozo porque o amor é uma defesa contra a castração e a pulsão. Como observa C. Soler, o amor é impotente, enganador e mentiroso. É impotente porque não recobre a falha do sujeito e não cura a castração; enganador porque promete ser o que falta, mas não cumpre; mentiroso na medida em que pretende o “bem” do outro - "No amor se quer o próprio bem, não o bem do outro", diz Lacan.
        O amor se revela aos amantes como ilusão para presentificar uma aparência de encontro entre o amor feminino e masculino, tornando suportável a dessimetria.
        Meus votos é que em nossas listas de ano novo possamos, além de sonhar com um novo amor ou uma nova forma de amar, colocar metas possíveis:
·        Cuidar da saúde;
·        Participar de um projeto cidadão;
·        Ter consciência dos próprios limites para não sobrecarregar demais o corpo e a mente;
·        Trabalhar no que gosta ou buscar uma fonte de prazer numa tarefa alternativa;
·        Partilhar alegria de viver com os amigos;
·        Agir conforme o desejo, de preferência, revelado numa psicanálise, se for o caso.
                             E que venha 2013!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!

sexta-feira, 7 de dezembro de 2012

Dinheiro não traz felicidade






Qual o caminho para encontrar a felicidade???
  • Em primeiro lugar, a felicidade só se alcança quando se percorre algo;
  • Depois, esse caminho não está pronto, ele deve pode ser construído, diferentemente do que a mídia prega sobre felicidade instantânea;
  • E em terceiro, a felicidade é singular, particular segundo a história de cada sujeito e seu desejo.
Todos nós nascemos marcados por um desejo que nos torna sujeitos de nossa história. A família é a estrutura determinante dessa imersão no mundo da linguagem e dos afetos. Viver em família é custoso e significa ter que desafiar as experiências do mundo comparando-as com os ensinamentos transmitidos por gerações. Tarefa duríssima e que, sem um amplo espaço afetivo interior, nos torna infelizes e sem a ferramenta fundamental para subsistir no mundo: o narcisismo.

FELICIDADE X LIBERDADE
A promessa de um caminho para a felicidade é um tema que muito nos interessa, pois antes de identificá-la com o gozo pleno, temos de pensar na sua justa repartição, o que coloca em jogo os impasses da civilização.
Desde nossos antepassados gregos, a cultura humana se estrutura a partir de um princípio regulador que limita e interdita as transgressões. Mesmo o cristianismo, fundado na crença monoteísta do mesmo deus de Akenaton (antes se adorava todos os deuses), instituiu o pecado original e o discernimento moral para as relações entre os homens.
Seguindo essa mesma linha, as idéias iluministas, embora baseadas no avanço do cientificismo e na educação, prometiam a felicidade, desde que os homens respeitassem a lei e a moral. O projeto iluminista, embora tenha retirado o homem do misticismo da Idade Média, não conseguiu diluir o mal estar. Todas as expectativas do iluminismo, no enlaçamento da felicidade com o progresso civilizatório, foram esvaziadas pelo crescente efeito desumanizador do discurso da ciência, pois assim como foi descoberta a penicilina, alta tecnologia de guerra está hoje disponível nas prateleiras.
Há uma parte dos sofrimentos humanos que continua indizível e por isso, Freud adverte: o sujeito busca a felicidade na quietude. Inclusive para alguns, a felicidade seria uma certa ignorãncia, um não querer saber do sofrimento dos outros.

A tão propagada ‘depressão’, nada mais é do que um diagnóstico moderno para a tristeza e impossibilidade do sujeito aceder à felicidade instantânea, tão propagada pela mídia, dos “prosacs e viagras”.
O mandamento contemporâneo é: seja feliz a qualquer preço! ou: o dinheiro traz felicidade!
Dinheiro não traz felicidade!!! Convivemos atualmente com o progresso alucinante desse discurso da ciência, que oferece fórmulas, explicações matemáticas e por outro lado, a acentuação do ódio, da segregação e a guerra.
Giannetti, em seu excelente livro Felicidade, articula brilhantemente economia e filosofia num diálogo sobre a civilização moderna, que estaria trazendo progresso material, mas não o "bem-estar subjetivo", ao retirar a espontaneidade das relações afetivas.
Ele analisa o crescimento econômico em sua relação com o bem estar subjetivo e curiosamente, afirma, que essa correlação só se torna possível se existe uma ‘renda psíquica’. Ou seja, podemos inferir então que a felicidade não depende do desempenho econômico.
A renda econômica não garante a renda psíquica, nem a saúde mental ou física, pelo contrário, muitas vezes corrobora para que o sujeito fique isolado, com medo de dividir seus bens materiais - não sabendo que eles representam também seu bens afetivos.
 Gianetti afirma: “Entre as crenças que povoavam a imaginação e a visão de futuro iluminista, uma em particular revelou-se problemática: a noção de que os avanços da ciência, da técnica e da razão teriam o dom não só de melhorar as condições objetivas da vida, mas atenderiam aos anseios de felicidade, bem estar subjetivo e realização existencial dos homens”.
Ele aponta que o maior desafio das próximas gerações será o de demonstrar como as liberdades individuais obtidas no século XXI poderão ser compatíveis com a preservação do planeta e como será possível ajustar os níveis de bem estar subjetivo. Teremos mais guerras, violência e segregação? Destruiremos as fontes de sobrevivência da espécie?

O amor como metáfora da felicidade
 Apenas os humanos querem ou podem ser felizes, isso indica que a felicidade é pulsional e, portanto, metaforizável. Isso eqüivale dizer que no amor, eventualmente, podemos construir um projeto de felicidade, que não tem nada a ver com a renda econômica.
Ninguém melhor do que o poeta sabe dizer da felicidade:
Tristeza não tem fim
Felicidade sim.
A felicidade é como a gota
de orvalho numa pétala de flor
Brilha tranqüila
Depois de leve oscila
E cai como uma lágrima de amor.
- Tom Jobim e Vinícius de Morais
O amor é o outro nome da felicidade quando juntos dois parceiros podem repartir as conquista e os fracassos. Os filhos podem surgir dessa mistura. Porém, ninguém deve ser obrigado a uma sobrecarga emocional que o filho proporciona: um filho só deve ser gerado quando se deseja assumir a condição paterna como felicidade, um feliz encontro. Os nossos filhos sempre são melhores do que os filhos dos outros, até porque, estaríamos colocando nossa incapacidade de educá-los quando elogiamos mais o filho do vizinho.

Poderia a psicanálise prometer a felicidade?
Um século depois da descoberta freudiana, a psicanálise, embora duramente atacada pelos diversos campos de saber sobre o que aflige o sujeito, continua demonstrando que seu discurso não é feito de ilusão, pois indica que o sujeito deve conhecer seu desejo.
O sujeito quando demanda uma análise e institui um Outro como lugar de resposta espera uma garantia de autentificação do seu sintoma e dá significações, interpretações esperando esse “selo de garantia”. O sintoma é uma mensagem dirigida a alguém que não tem condições de decifrar.
A manifestação transferencial reduz o analista a um “decifrador”, intérprete de seu mal estar sintomático e o sujeito tem acesso ao desvelamento da significação escondida no sintoma.
Somente aos poucos, o sujeito vai tendo acesso à sua verdade, aos tropeços, auxiliado em suas quedas pelo analista, sempre presente e pontuando seu discurso. É como se ele pudesse encontrar o manual de como foi fabricado e que tinha sido perdido nos nós da vida.
Se a felicidade é condição humana, conhecer a mensagem cifrada no sintoma é a aposta da psicanálise para que cada um possa encontrar a direção possível do seu desejo, pela ética do bem dizer.
Poderíamos então dizer que a felicidade depende de como o sujeito pode traçar seu destino e não do quanto ele pode guardar ou gastar em moeda, pois cada um gasta sua renda econômica de acordo com o que aprende do funcionamento mental e acumule uma renda psíquica para as futuras gerações.
                                    Alba Abreu Lima

quarta-feira, 5 de dezembro de 2012

Vou me aposentar, e agora?

 
“A vida me ensinou a dizer adeus às pessoas que amo, sem tirá-las do meu coração”. Chaplin
Depois de quase uma vida dedicada ao Tribunal de Justiça, tendo passado por experiências diversas e enriquecedoras com atendimento a infratores, acompanhamento de abandonos e adoções, pareceres em disputas em varas de família e por fim, no atendimento clinico ao servidor do Poder Judiciário, meu tempo foi cumprido. Um misto de orgulho por ter dado os melhores anos de minha capacidade laboral e ao mesmo tempo uma certa tristeza por não ter mais a garra e a determinação que tinha aos 22 anos quando comecei para continuar no serviço público, uma vez que continuo no meu trabalho como autônoma em consultório privado.
A aposentadoria se configura para alguns como um período de lazer ou, como tem acontecido no Brasil, um retorno ao trabalho como necessidade de complementação da renda e do padrão de vida conquistado.
Fiquei me perguntando o que sentem as pessoas que estão prestes a se aposentar? O que pensam, o que desejam e como podem continuar ativas sem se sentirem desamparadas?
Sabemos que as realidades variam, mas de forma geral, aquele aposentado que dispõe de economias tem sempre mais liberdade para sonhar, encontrar um lugar no seio da família que muitas vezes depende dele financeiramente e isso lhe fornece a segurança para enfrentar novos desafios: tais como, se envolver num grupo de trabalho voluntário, abrir um novo negócio, realizar uma viagem e até mesmo retornar a uma atividade de estudo ou de trabalho mais prazerosa, sem ter de cumprir “metas”.
Nossa sociedade capitalista é tremendamente contraditória:
·     Por um lado considera a aposentadoria como um direito e uma conquista do trabalhador, depois de muitos esforços e anos de trabalho;
·     Por outro, desvaloriza o sujeito depois de aposentado, que passa a ser visto como improdutivo e, portanto, inútil.
Melhor exemplo disso se pode verificar nas empresas que não agradecem ao funcionário que passou quase uma vida dedicando-se ao trabalho: não existe uma solenidade como a da POSSE, nem uma carta de agradecimento tal quando se recebe uma carta de aprovação de um concurso, nem um exame médico/psicológico como o exame admissional para devolver o funcionário em plenas condições de viver sua aposentadoria com conforto físico e psicológico... Nada, simplesmente o funcionário passa de um dia para o outro a não fazer parte daquela “família”, com quem passou a maior parte de sua história, deixando muitas vezes filhos com febre em casa, abrindo mão de momentos decisivos na própria família e faltando a eventos importantes para ser um funcionário responsável!
Em entrevistas que realizei com colegas recém-aposentados as respostas sobre o que sentem é como se fossem uma laranja que não tem mais sumo...Como se de um dia para o outro não fosse mais um ser humano com emoções e sentimentos.
Pensando em tudo isso e vivendo agora na “pele” meu ultimo mês de trabalho, é que pensei como é importante um Programa de Preparação para Aposentadoria. Não somente oferecer, como já é de praxe em algumas empresas, palestras sobre:
·     Mudança na forma de estruturar o tempo depois da aposentadoria;
·     Mudança nos modos de se relacionar com familiares, colegas, subordinados, superiores; vizinhos e outros;
·     As implicações legais, biológicas, psicológicas, sociais, familiares que surgirão e como atender às demandas;
·     A importância e a forma de se buscarem alternativas de uso de suas capacidades e talentos.
Mas, acima de tudo penso que seria interessante e muito justo acrescentar:
I) Exame médico e psicológico nos últimos meses da aposentadoria para não iniciar um processo depressivo, pela baixa estima que a aposentadoria produz;
II) Orientação por pessoa competente, de planilhas de orçamento doméstico, uma vez que as perdas salariais vão fazer parte do seu futuro.
III) Orientação do psicólogo e assistente social aos membros da família, que devem ser ouvidos e convidados a participar da palestra que aborde o processo de aposentadoria e a importância do apoio do grupo familiar no momento de mudança de vida;
        Assim como, o  funcionário poderia receber uma carta de agradecimento pelos serviços prestados, a partir de informações de sua ficha funcional – existem funcionários que nunca tiveram uma falta ao trabalho e saíram sem um bilhete de agradecimento!
Ou mesmo constar no seu ultimo contra-cheque um desejo de feliz descanso.
São reflexões que faço numa visão psicanalítica, mas desejando que a Gerencia de Pessoas reflita sobre o desengajamento sucessivo do trabalho, com a ajuda de psicólogos e assistentes sociais sugerindo medidas, como por exemplo:
No último mês o servidor possa se matricular numa atividade física, curso de línguas ou  comece um trabalho alternativo e possa vir ao trabalho apenas duas ou três vezes na semana, visando uma separação gradativa e uma substituição desse lugar no qual fez seus amigos e poder ir deixando aos poucos o cotidiano de uma vida.
Como já dizia o poeta Mario Quintana: “Se me esqueceres, só uma coisa, esquece-me bem devagarinho”.

         Aracaju, dezembro de 2012

psicanálise

"Não posso imaginar que uma vida sem trabalho seja capaz de trazer qualquer espécie de conforto. A imaginação criadora e o trabalho para mim andam de mãos dadas; não retiro prazer de nenhuma outra coisa." Freud

terça-feira, 4 de dezembro de 2012

Hamlet por Lacan

O DESEJO E SUA INTERPRETAÇÃO – HAMLET POR LACAN “A hora do encontro é também despedida” Freud situou o drama de Hamlet com os mesmos ingredientes trazidos pela tragédia de Édipo-Rei, girando em torno do desejo parricida e amor incestuoso pela mãe. No entanto, destaca que, por conta da distância temporal, são distintos os modos de tratamento dado por cada época: no Édipo, a fantasia é atuada em cena, enquanto que em Hamlet os desejos e a fantasia estão recalcados. O complexo de Édipo aparece na obra de Freud em 1900 como o lugar onde se ordena o desejo. Wunsch é voto, desejo. A etimologia da palavra remete a Vênus, Wahn, esperança, espera. Do latim: vanus, ou VAZIO. A descoberta de Freud de uma vida psíquica inconsciente dotada de sonhos, chistes, sintomas e atos falhos, demonstram que o sujeito é constituído pelo efeito dos significantes no corpo. Hamlet, Príncipe da Dinamarca, filho único e herdeiro do trono, fica sabendo, através da aparição do espectro de seu pai, que seu tio o assassinou para conquistar a coroa e casar-se com sua mãe. A fim de avaliar a veracidade dos fatos, Hamlet finge-se de louco, despistando a Corte e mesmo a mulher que ama, Ofélia, filha de Polônio, conselheiro do Rei. Por ocasião da chegada de uma trupe de atores, Hamlet busca a verdade, testando o rei com o exemplo clássico do metateatro, fazendo representar uma peça semelhante à situação narrada pelo fantasma. A reação do rei, confirmada por Horácio (único que pode compartilhar com Hamlet o segredo da morte do pai), atesta a veracidade do testemunho paterno, de maneira que Hamlet fica seguro para a execução do seu ato de vingança. A oportunidade surge em seguida, depois do espetáculo, quando ele surpreende o tio ajoelhado, rezando. Porém, Hamlet, temendo prestar-lhe um favor e enviá-lo para a salvação eterna, desiste de concretizar naquele momento sua vingança. Depois, junto à mãe, buscando persuadi-la da verdade, vê chegada a hora para a vingança quando supõe ser o rei escondido atrás das cortinas, escutando a conversa. Todavia, engana-se, matando Polônio, pai de Ofélia. Daí nova aparição do espectro cobrando a postergada vingança. Por determinação do rei, sabendo que está em perigo, envia Hamlet para a Inglaterra, mas na verdade é uma cilada preparada pelo tio para dar cabo de sua vida. Mais uma vez, Hamlet consegue retornar à Dinamarca para tentar executar seu ato de vingança. Mas é interceptado no caminho pelo enterro de Ofélia que enlouquecera e se afogara após a morte do pai. Laertes, exigindo justiça diante do assassinato do pai, instruído pelo rei, se propõe a duelar com Hamlet, com a ponta do florete envenenada. Hamlet e Laertes são feridos enquanto a rainha agoniza por ter bebido uma taça envenenada destinada ao filho. Antes de morrer porém, ela e Laertes acusam o rei e enfim, Hamlet o mata. Porém ele também, agora moribundo, agoniza, depois de ter recebido o perdão de Laertes, suplica a Horácio que sobreviva para narrar ao mundo a verdade e limpar sua honra. Hamlet ainda tem tempo de organizar o destino da coroa dinamarquesa que deverá passar ao herdeiro da Noruega, Fortimbrás, que chega de uma campanha vitoriosa da Polônia. Na literatura, essa tragédia está classificada como “tragédia de vingança”, sendo aqui vingança, sinônimo de justiça, de busca da verdade. Hamlet, um intelectual e acossado pela dúvida, faz com que a tragédia seja permeada pelo dilema, daí poder ser nomeada como tragédia da inteligência. Opondo-se a Goethe para quem Hamlet é o tipo de homem cujo poder de ação é paralisado pelo desenvolvimento excessivo de seu intelecto, paralisado pelo pensamento, Freud afirma ”que Hamlet está longe de ser representado como uma pessoa incapaz de adotar qualquer ação, mas uma inibição lhe impede de cumprir a tarefa imposta pelo fantasma do pai”. Ele não consegue se vingar de Claudius, sem revelar seu desejo recalcado de matar o pai. Ou seja, a inibição de Hamlet denuncia sua problemática de culpabilidade e escrúpulos de consciência, uma vez que se iguala a seu rival pelo desejo edípico. O remorso que paralisa e impede Hamlet de agir é porque o tio se torna um RIVAL, e , ao mesmo tempo IGUAL, pois realiza seu desejo secreto.(a----------a’) Trata-se da dialética do espelhamento. Ele é inocente e culpado ao mesmo tempo = inocente porque tem o dever de restaurar a ordem e culpado porque deseja inconscientemente o lugar do tio. A peça inicia com o encontro dos amigos: Horácio, que diz: “Eu vim para assistir aos funerais do seu pai” ao que Hamlet responde “Ou seja, veio ao casamento de minha mãe”. Duas ocasiões muito próximas: a morte misteriosa do rei e o casamento quase que imediato de sua mulher com o cunhado. Por isso, a ira de Hamlet: “Economia, Horácio! Os assados do velório puderam ser servidos como frios na mesa nupcial. Preferia ter encontrado no céu meu pior inimigo do que ter visto esse dia!” Quando aparece o fantasma do pai que revela a versão mentirosa de que dormia no jardim quando foi picado por uma serpente e que na verdade foi assassinado por meio de um veneno inoculado no ouvido, pelo próprio irmão que lhe toma ao mesmo tempo: a coroa, a rainha e a vida, a peça vai consistir em contornar as hesitações de Hamlet em cumprir o supereu paterno: “Se você algum dia amou seu pai ... vinga esse infame assassino” ao que responde:“Mais rápido do que um pensamento de amor”. No entanto, Hamlet não consegue cumprir o pedido paterno e fica dando voltas em hesitações e postergações até o ato final. O que a peça acentua é a posição de Hamlet como lugar vazio, de espera... Lacan, no Seminário VI “O desejo e sua interpretação”, pergunta: “ O que quis dizer Freud trazendo-nos Hamlet?” A distinção entre Hamlet como paradigma do herói moderno em contraste com o herói-trágico Lacan da antiguidade, Édipo, seria sua posição em relação ao saber: enquanto em Édipo os desejos aparecem e são realizados, porque ele nada sabia; em Hamlet, esses mesmos desejos estão recalcados e ele sabe, por isso ele não age, vacila. O horror que deveria impulsioná-lo para vingar o pai provoca uma elaboração sintomática – remorsos e escrúpulos. Lacan diz que há uma correlação entre o não-saber do Outro e a constituição do inconsciente do sujeito. Não há desejo sem Outro, porque o sujeito é desamparado e é para além das necessidades que ele pode receber a s(A). No ato II, cena 1, Ofélia, mulher por quem Hamlet estava apaixonado e era correspondido, relata ao pai, Polônio, o DES-encontro com o amado: “...Hamlet me surgiu. Com o gibão todo aberto, sem o chapéu na cabeça, os cabelos desfeitos. As meias sujas, sem ligas, caídas pelos tornozelos. Branco como a camisa que vestia. Os joelhos batendo um contra o outro, E o olhar apavorado de quem foi solto do inferno. Pra vir contar cá em cima os horrores que viu... “Me pegou pelo pulso e me apertou com força. Depois se afastou à distância de um braço E, com a outra mão na fronte, Ficou olhando meu rosto com intensidade, Como se quisesse gravá-lo... E aí me soltou. Com a cabeça virada para trás foi andando pra frente como um cego, atravessando a porta sem olhar, os olhos fixos em mim, até o fim”. Ou seja, Hamlet “enlouquece” com o destino que lhe reserva o saber, abandona as coisas do mundo, Ofélia inclusive, como objeto amado, para se fixar na idéia de vingança e define essa loucura de saber como: “Há mais coisas no céu e na terra, Horácio, do que sonha a tua filosofia”. Horácio nomeia essa angústia do amigo como “algo de podre no reino da Dinamarca”. Na verdade, compreendemos que, como toda tragédia, o equilíbrio foi rompido e o herói deve introduzir a ordem, restabelecendo a harmonia, a nêmesis. O gênero trágico determina a imolação do herói, num ritual de sacrifício que vem do culto de Dionísio, para se obter uma purificação para a preservação dos valores éticos. Para Lacan o importante de seu método é a possibilidade de separar as fibras homólogas da estrutura nas duas fases: • De Édipo • De Hamlet Ele separa os atos dos dois heróis, afirmando que as criações poéticas engendram as criações psicológicas: Hamlet – culpado de ser/ crime de existir/ ser ou não ser seu ato só se realiza in extremis, pq o Outro sabe; Édipo – nada sabe/melhor seria não ter nascido O pai sabe que está morto e, se o Outro sabe, o sujeito não se realiza como faltante, pois esse Outro não está marcado pela falta. Hamlet no seu encontro com o pai-fantasma não encontra o significante do Outro barrado que lhe permitiria aceder a significação do desejo do Outro e a falta no campo significante. Falta a Hamlet a transmissão da castração. Para Hamlet difícil entender porque a mãe não faz luto do marido, então, qual a verdade de seu desejo? Aquilo com que Hamlet se debate o tempo todo é o desejo de sua mãe: “Quem era seu pai para sua mãe, substituído de um dia para outro pelo irmão? No ato III, na cena com a rainha, ele pede: retome o caminho dos bons costumes, comece deixando de deitar-se com meu tio... e todo mundo sabe que o apetite vem na medida em que se come; esse demônio – o hábito é o que nos liga às piores coisas...” Ou seja, em nome da dignidade, ele articula uma demanda ao Outro materno. Hamlet de Shakspeare teria de vingar o assassinato do pai e ainda, deter a luxúria da mãe. Nesse sentido é que Lacan situa a tragédia no grafo do desejo apontando que Hamlet só pode receber como mensagem, o que está no andar inferior do grafo: o significado do Outro, um Outro não barrado. A mãe como uma boceta aberta, quando um partiu, o outro chega ... “eu não conheço o luto”. Se Gertrudes tem esse apetite insaciável, não permitindo ao filho aceder ao desejo, porque não coloca o filho como objeto amado, passível de se questionar sobre “o que o Outro quer de mim?”,ao casar com o cunhado, deserda o filho do trono que lhe cabia legitimamente e o falo (a coroa) que não mais será transmitido de pai para filho. Por outro lado, um pai que clama por vingança e que denuncia que morreu na “flor dos pecados” não é um pai que sustenta a articulação do desejo com a lei, pelo contrário, transfere ao filho o peso dos pecados, ao que Hamlet responde: “Maldita a sina. Que me fez nascer um dia pra consertá-lo!” De privador do gozo da mãe se torna seu cúmplice porque não compromete a mulher em seu assassinato. Diferentemente de Édipo onde o S(A/) é encanado pelo pai, autor da lei, que abre a pergunta: Onde está o crime? Onde está o culpado? Édipo paga a dívida do pai, ainda que com o destino trágico. Ou seja, o ser falante, tem de fazer o luto do falo. Lacan diz: “ no momento do desenlace final de suas exigências edipianas, vendo-se castrado, privado da coisa, o sujeito prefere abandonar uma parte de si mesmo, que será, a partira de então, para sempre interdita, formando a cadeia significante.” Hamlet se expressa em seu to be or not...? e permanecerá embaraçado no campo do desejo. Nesse sentido a peça também apresenta o drama da subjetividade. Ele estará sempre na hora do Outro: o encontro é cedo demais e quando age é por precipitação. Esse jogo com a hora do encontro. Se Édipo não hesita 36 vezes diante do ato é porque ele age antes de pensar e SEM SABER – o ‘não sabido’ é a estrutura essencial no Édipo: “bem aventurada ignorância daqueles que estão imersos no drama pelo fato de que o $ que fala está submetido ao significante”. O problema é que Hamlet SABIA! Eis a condenação! O pai sabe = Hamlet sabe = s(A) A experiência da análise ensina que “não sou aquele que penso que sou”, pela simples razão que não há no Outro nenhum significante que possa responder ‘o que sou’. É a função enigmática do falo = o significante escondido, aquele que o Outro não dispõe. O desejo deve ser situado sobre a linha A---- ($ ^ D), encontra seu suporte, sua regulação imaginária. Falta a Hamlet situar um objetivo a pergunta ao Outro. É na medida em que o sujeito está privado desse significante que um objeto se torna objeto de desejo. Eis o que significa ($^a) = o que tratamos na análise é de percorrer a cadeia significante e o curtocircuito imaginário entre d e a no ($^a): Hamlet não pode suportar o luto de Laertes, um luto transbordante que ele não pode estampar por Ofélia. Quando ele assume esse luto, novamente na dialética do espelhamento, através de uma posição homóloga – só então, diz Lacan, ele pode reencontrar o homem, capaz de amar, lutar e matar! Laertes é o suporte, exemplo, para que Hamlet recupere seu desejo, através do ciúme do luto. Os outros pensam em cativar Hamlet com objetos de coleção – seis cavalos berberes, seis espadas francesas, (como os gadgets da vida moderna), mas se enganam, porque do que se trata é de uma relação especular i(a)-----m, a imagem do outro absorve completamente aquele que a contempla. É a ostentação do luto que Hamlet coloca seu desespero do amor por Ofélia, aqui já na condição de falo perdido: “O amor de 40 mil irmãos somado, não conseguiria ultrapassar o que sentia por ela”. É a reconstituição do objeto do desejo, na possibilidade de luto do objeto perdido. O objeto a na fantasia vai de agora em diante, sustentar a relação do sujeito ao que ele não é: o FALO. a = efeito da castração, marco opaco, termo obscuro, o nada que vai buscar a sombra de sua vida inicialmente perdida. A encenação de Hamlet se aproxima da de Édipo porque se organizam em torno do complexo de castração e do Nome-do-Pai como articulador da lei e do simbólico. Lacan marca, durante esse Seminário que é contemporâneo da Significação do Falo e De uma questão preliminar, a passagem do eixo imaginário – m.....i(a) – o falo capturado nessa relação especular, narcísica, para o registro simbólico, quando Hamlet pode desenhar seu gancho interrogante do Grafo do desejo e colocar em cena seu enigma de sujeito a partir da simbolização do luto: perda de Ofélia = perda radical do falo. Hamlet pode então reencontrar na palavra – linguagem, não mais fingindo loucura - seu drama subjetivo e demasiadamente humano. Encontrar em Hamlet uma placa giratória onde se situa um desejo é a proposta de Lacan, porque tanto se pode identificar nele um histérico, de desejo insatisfeito, ou um obsessivo, com desejo impossível. Mas Lacan é claro: Hamlet não é um obsessivo porque é uma criação poética, ele não TEM uma neurose, ele nos demonstra a neurose. A tragédia de Hamlet é apresentada como um drama do desejo e a concepção de mundo como ambigüidade, em constante mutação e negação da univocidade. Isso tem um efeito de apaziguamento e desvencilhamento da angústia, que nos alivia pela catarse e produção do prazer através da projeção. Isso quer dizer que, se nos emocionamos numa peça de teatro é por conta do lugar que ela se oferece para brindarmos nossa relação com o desejo. Também os atores que interpretam Hamlet, trazem a dimensão (lugar vazio para situar nossa ignorância = presentificação do inconsciente) da relação tecida pelo nosso imaginário, por nossa relação com nosso corpo: “É com nossos membros – o Imaginário – que fazemos o alfabeto desse discurso que é inconsciente, cada um de nós em relações diversas...da mesma forma que o ator empresta seus membros, sua presença, não como marionete, mas com seu inconsciente bem real”. Além da psicopatologia da vida cotidiana, Shakespeare ensina que na prática analítica do que se trata é do impasse com o desejo e as saídas possíveis a cada caso. Só podemos calcular os efeitos de uma análise, retroativamente, a partir do que ficou depositado da lógica da fantasia para aquele sujeito particular. Por isso são necessárias infinitas voltas e contornos a fim de depurar o fixado, imutável, sob o artifício da neurose de transferência.

dança e psicanalise

CRUEL, por Alba Abreu Falar de família por vezes é simples: um pouco do vivido de cada um, mesclado com a experiência das demandas nos Tribunais articulados a uma teoria que dá suporte e eis que surge o texto! Porém, quando o texto envolve arte, espetáculo, mostração e onde não se dispõe de uma só palavra pra dizer tudo o que é transmitido no espaço familiar, como torná-lo apreensível? "Cruel" é a resposta belíssima da Cia Deborah Colker: espetáculo de dança que está sendo encenado numa turnê pelo Brasil e que, com o precioso olhar do diretor de teatro Gilberto Gawronski - o mesmo que fez Torquato Neto na peça do diretor e psicanalista Antonio Quinet: ArTorquato - apresenta histórias de laços e desenlaces familiares. Desde a criação do IBDFAM e pela intervenção de seus associados nos Tribunais, na mídia e no corpo social, as situações entre os membros familiares, secretas e por vezes dramáticas, começaram a ser desveladas e ganharam a possibilidade de compreensão e intervenção. No entanto, ainda é chocante o silêncio das crianças e das mulheres na violência intrafamiliar; no abuso, pedofilia, no enfrentamento da adolescência e, a ambivalência própria do humano, que Lacan denominou de amódio, pois sabemos que um não vai sem o outro. Esse foi o tecido que Colker costurou a coreografia que encanta e por vezes atemoriza o espectador, totalmente fascinado pelo trabalho corporal impecável e milimétrico para representar eros e tânatus, duas forças que Freud descobriu que coexistem no ser humano e que encontram na família o molde de seus investimentos futuros. Colker diz que “as histórias estão ali para serem apreendidas por cada um de um modo particular sem qualquer compromisso com a explicitação do sentido, mas sim com a exigência de sua produção” (entrevista na Folha de SP). Como toda arte, tem o dom de “inexprimir o exprimível”, como diria Barthes. Lacan, no Seminário sobre a Ética da Psicanálise, diz que: “A arte é um certo modo de organização em torno do vazio”. A arte pincela, esculpe, toca e baila com notas musicais a figuração do silêncio, do que está mais escondido. Cruel se desenvolve em dois atos: 1º ato: O começo nos faz lembrar de “Lecuona” do Grupo Corpo, por resgatar os grandes bailes de salão, porém sem a melosidade dramática e a sensualidade de Pederneiras, porque Deborah aposta mais no enigma que o espectador deve responder com sua emoção. Tanto que coloca pas-de-deux de homens, identificando que os casais se formam independente do gênero – masculino ou feminino. O figurino primoroso que remete aos bailes, mas é devidamente atualizado, permite os movimentos e ao mesmo tempo se conjuga perfeitamente com a valsa de Vivaldi, a canção de Nelson Gonçalves e o blues quase inaudível de Julie London. Depois, numa grande mesa branca, o jogo da cena familiar transparece, como nas ceias natalinas ou grandes ocasiões onde o amor, os afetos, os ódios, as mentiras, as intrigas e por fim, a violência e a morte se presentificam na habilidade em lidar com facas e fazer valer o dito de Picasso: “A arte é uma mentira que nos faz compreender a verdade”. 2º ato: os corpos se despedaçam através de paredes de espelhos num reflexo de movimento das peças agora negras e pelo efeito plástico da luz, colocando novamente a ambivalência do sublime e do cruel. Quem tem prazer, quem sofre com a dor? O que acontece quando o sujeito carrega o peso do "tu-deves" (Nietzsche) familiar e, ao mesmo tempo, a pulsão de morte que carrega em si? Corpos sensuais, quebrados, amputados, equilibrando-se no ar pela força dos bailarinos, agonia de corpos que levam o espetáculo ao ápice pela incrível leveza e destreza dos 17 bailarinos excepcionais equivocam mais do que respondem a essa mensagem cifrada do gozo. Toda invenção artística só pode advir de uma falta: falta em ser do sujeito da linguagem. A dança, em sua linguagem corporal, animada pelos acordes e de maneira sublime, para que não se fechem os olhos e os ouvidos diante da crueza dos laços familiares, que precisam ser amansados todos os dias e que seja às custas de um belo espetáculo! Aracaju, agosto 2008

direito e psicanálise

Psicanálise e Direito Alba Abreu Lima A interface O trabalho mais árduo do psicanalista de nossa época é tentar transmitir os conceitos fundamentais da psicanálise em sua articulação com as outras disciplinas, sem perder de vista a impossibilidade de manejar o discurso analítico fora da clínica. A psicanálise tem participado ativamente dos debates com o Direito, visando a dar um sentido às novas manifestações que se impõem na ordem social, como pais homossexuais, direito à identidade social do transexual, paternidade sócio-afetiva e a visão ética das novas maneiras de reprodução. Desejos inéditos se desvelam na clínica psicanalítica e a família se transforma a partir do discurso, demandando um novo ordenamento jurídico. O psicanalista como operador do Direito faz psicanálise aplicada que, associada ao conhecimento das leis, da sociologia, da antropologia para o diagnóstico da situação apresentada, presta uma maior eficiência em cada caso apresentado, já que no Direito de Família cada caso é ímpar. Além do jurídico – a nova ordem social Constatamos, na atualidade, uma série de modificações na função da paternidade, nas novas formas de filiação e conseqüentemente surgem outras modalidades familiares que se constituem a partir da incidência de alguns fatores: • A eleição de objeto, atualmente está mais norteada pelo amor e desejo do que na imposição social. Inventamos novos conceitos para compreender a união estável, parceria homossexual, etc; • O discurso de igualdade social transformou as relações entre homem e mulher afetando os papéis da família de outrora: um pai pode hoje exercer os cuidados com o filho - “maternagem”- e uma mãe pode decidir o orçamento doméstico, ou seja, a autoridade parental pode ser exercida por qualquer membro que tenha a capacidade de chefiar a família; • A participação da família na educação dos filhos vem sendo delegada à escola, à mídia ou aos profissionais especializados; • Os avanços da genética que reduzem a paternidade ao biologismo, gerando a confusão entre pai simbólico e genitor. O filho, além de lidar com o enigma proposto pelo desejo dos pais ainda tem de elaborar o enigma de sua origem biológica e as questões éticas concernentes. • A maternidade foi atrasada em decorrência da possibilidade de novas técnicas de reprodução e assim, algumas mulheres podem se dedicar à carreira. O perigo reside em considerar os filhos um enfado, pelo fascínio exercido pelo mundo dos negócios em constante mutação. Para a psicanálise, são as relações sociais que permitem o desenvolvimento do sujeito no mundo e sua entrada no mundo de linguagem. O modo como cada um se inscreve na família e na comunidade determina os vínculos que serão ampliados a partir das identificações com os objetos de escolha amorosa. Só que esses objetos nem sempre representam a família nuclear tradicional. O jurídico então, acolhe as novas demandas e tem por dever normatizar os novos hábitos da sociedade, visando regulamentar a vida do cidadão frente ao mal estar da cultura. Hannah Arendt, em Responsabilidade e Julgamento, afirma: “É uma inegável virtude do Judiciário seu dever de focar a atenção no indivíduo, e isso até na era da sociedade de massas, em que todos os indivíduos são tentados a se considerarem um simples dente na engrenagem em alguma espécie de maquinaria – seja a maquinaria bem azeitada de algum imenso empreendimento burocrático, social, político ou profissional, seja o padrão casual mal ajustado e caótico das circunstâncias em que todos de algum modo levamos nossa vida”. O destino da família e o desamparo do mamífero homem O destino da família está proporcionalmente relacionado pelo destino que o sujeito tem em sua família de origem. O ser humano quando reflete sobre o nome destino, cogita um sentimento de que existem forças exteriores que conduzem sua história e que são responsáveis pelos acontecimentos trágicos ou banais da vida. Em psicanálise chamamos destino ao mito individual do neurótico ou romance familiar, construído na relação com o desejo do Outro, isso quer dizer que são as condições com as quais se arranja com a castração e as manobras que executa para se libertar da posição de objeto (O que o Outro quer de mim?) visando sua inserção no mundo social como um sujeito de desejo e conseqüentemente, de direitos. Como de praxe, são os escritores que dizem melhor dessa passagem de objeto capturado no desejo do Outro materno à posição de sujeito. No livro autobiográfico “De amor e trevas”, o escritor Amós Oz descreve o papel do destino do sujeito em sua família: “A hereditariedade e o meio que nos alimenta, assim como a nossa classe social, são como cartas de baralho que nos são distribuídas aleatoriamente, antes do jogo começar. Até á não há nenhuma liberdade de escolha - o mundo dá, e você apenas recebe o que lhe foi dado, sem nenhuma outra opção. Entretanto, a grande pergunta é o que cada um de nós consegue fazer com as cartas recebidas. Pois há os que jogam muito bem com cartas nem tão boas, e há, pelo contrário aqueles que desperdiçam e perdem tudo, mesmo com cartas excepcionais! E esta é toda a nossa liberdade: liberdade de jogar com as cartas que nos foram dadas. Mas mesmo a liberdade de escolher o nosso jogo depende, por ironia, da sorte de cada um, da paciência, da sabedoria, da intuição, do arrojo. Mas essas também não são cartas que nos foram dadas antes do jogo começar, sem nos perguntarem nada? “ Freud apresenta a elaboração do destino que o sujeito dá ao infantil em dois textos de 1908: “Escritores criativos e devaneio” e “Romances familiares”. Ele assegura que os escritores buscam inspiração do mesmo modo e na mesma fonte dos neuróticos do “romance familiar”: no jogo infantil, na brincadeira de inventar uma nova família, uma nova identidade mais interessante e poderosa que a sua própria. Cada romance familiar carrega o enredo de uma trama onde o sujeito simboliza seu encontro com o real. O vazio central tem nome de castração e as modalidades subjetivas são as escolhas que o sujeito faz no confronto com a falta. Nessa trama, o sujeito tece sua fantasia, construção singular que serve de muro contra o gozo e sustenta o desejo. Para Elisabeth Roudinesco, em A família em Desordem: “A família, no sentido freudiano, põe em cena homens, mulheres e crianças que agem inconscientemente como herói trágicos e criminosos. Nascidos condenados, eles se desejam, se dilaceram ou se matam, e não descobrem a redenção senão ao preço de sublimar suas pulsões.” Dizer que o sujeito é trágico não é dizer que tudo está determinado desde antes, mas a rota que ele escolhe para se salvar da ruína pode se tornar seu aniquilamento. O herói grego realiza seu desejo como desejo do Outro e aceita a responsabilidade de avançar até a queda final. A escolha o conduz até às últimas conseqüências: a imolação do herói é necessária para a preservação dos valores da comunidade. Na lógica da psicanálise, desejar é buscar o que se perdeu na operação da castração, o que quer dizer que quando se escolhe a alienação significante, a história geracional, perde-se uma parte do seu próprio ser que é irrecuperável. No drama da passagem para a existência simbólica não há nada senão vida conjugada com morte: essa a dialética freudiana. A separação do objeto materno é vivida como uma morte, desamparo. Freud construiu, a partir das tragédias de Sófocles e Shakeaspeare, metáforas clínicas da existência humana e embora heróica, é como homem comum que ele a efetiva, diz Lacan no Seminário da Ética. A família recobre o desamparo psíquico inerente ao mamífero homem para que ele encontre seu lugar no mundo numa operação que vai muito além da satisfação das necessidades. Vida líquida A sociedade “líquido-moderna”, expressão cunhada por Bauman, exige a lógica do consumismo como desafio para preservar a individualidade numa total inversão das regras: a oferta do mercado é para que o sujeito aceite o novo (seja um celular, carro, coca-zero) em detrimento do conhecido e tido como ultrapassado. Ou seja, o indivíduo, antes responsável por seus méritos e fracassos não pode mais exercer sua livre escolha sob o risco de ficar obsoleto e virar lixo se não aderir à síndrome consumista! A individualidade passou a ser um privilégio da era das celebridades, das edições limitadas, que são seguidas a risca pelo consumidor. Resultado: a alienação ao discurso capitalista produz a homogeneização e o ciclo da permanente insatisfação que por si mesma se torna o motor do consumismo. Mesmo as crianças não estão sendo poupadas, como explica Bauman em “Vida Líquida”: antes vistas como o “futuro do país”, hoje são os “consumidores do amanhã”. As crianças são cada vez mais consultadas quando os pais vão comprar algum bem, pois elas se tornaram especialistas em informação e podem assumir o comando da decisão. Isso pode ser visto nas campanhas publicitárias e a mudança educacional está cada vez mais relacionada ao discurso da eficiência e da competitividade. Conclusão O psicanalista, principalmente aquele que trabalha no jurídico, deve ajustar sua capacidade diagnóstica à singularidade dos casos e das configurações familiares que, paulatinamente, vêm substituindo a norma familiar edípica estruturada a partir da cultura grega e dos valores judaico-cristãos. Cada resposta que o sujeito dá em conformidade com seu desejo deve servir de baliza para o analista realizar seu compromisso com a verdade e interrogar a dimensão ética da demanda do sujeito. A partir da descoberta freudiana do inconsciente só há um responsável: o sujeito – fora do que se coloca como moral, como divino ou regras sociais. O sujeito é responsável pelo seu desejo, pelos seus atos, seus sintomas e suas escolhas. Quando a condição humana se reduz a uns tantos objetos de consumo e à uma busca imaginária da perfeição do corpo, o sintoma pode ser o que de melhor pode aparecer. A clínica é o lugar onde os sintomas revelam a humanização do sujeito – dizer não ao consumo e buscar reatar o laço com os semelhantes.

o destino das famílias

O destino das famílias Alba Abreu Lima O destino das famílias está proporcionalmente relacionado ao destino traçado por cada sujeito em sua família e na cultura. O espaço onde a família se organiza, como transmite seus genes, seus valores, seus bens, sofre conseqüências significativas de acordo com momento histórico em que se esteja. O fato é que, para a psicanálise, é o Outro quem dirige o sujeito na sua entrada no mundo de linguagem. O modo como cada um se inscreve na família e na comunidade é que determina os vínculos e estes, serão ampliados no decorrer da vida, embora tenham como base as identificações aos primeiros objetos de escolha amorosa. O que marca a contemporaneidade são as modificações na função da paternidade, os novos modos de filiação a partir do avanço da ciência e as modalidades familiares que são nomeadas com a invenção de conceitos que considerem no campo afetivo, social e jurídico a união estável, união homoafetiva, parentalidade. Ou seja, indicativos de uma família plural para falarmos de famílias em lugar de “a família”. Nesse sentido é que, desde março deste ano, o Instituto Brasileiro do Direito de Família (IBDFAM) trabalha na produção do anteprojeto do “Estatuto das Famílias” que contempla todas as atualizações jurídicas necessárias para consolidar e garantir os direitos das mais variadas configurações familiares do Brasil. Freud afirma que é na trama familiar que o sujeito tece sua fantasia, construção singular que serve de muro, obstáculo à demanda familiar e sustenta seu desejo. Para Elisabeth Roudinesco, em A família em Desordem: “A família, no sentido freudiano, põe em cena homens, mulheres e crianças que agem inconscientemente como heróis trágicos e criminosos. Nascidos condenados, eles se desejam, se dilaceram ou se matam, e não descobrem a redenção senão ao preço de sublimar suas pulsões”. Em psicanálise chamamos destino ao mito individual do neurótico ou romance familiar, construído na relação com o desejo do Outro, isso quer dizer que, são as condições com as quais o sujeito se arranja com a castração e as manobras que ele executa para se libertar da posição de objeto (O que o Outro quer de mim?) que vão nortear sua inserção no mundo social como sujeito de desejo e, conseqüentemente, de direitos. A família recobre o desamparo psíquico inerente ao mamífero homem para que ele encontre seu lugar no mundo numa operação que vai muito além da satisfação das necessidades. A família como ficção, produzida pelos escritores criativos, retrata a passagem da criança - objeto capturado no desejo do Outro materno - à posição de sujeito, marcado por um destino. No livro autobiográfico “De amor e trevas”, o escritor Amós Oz descreve o papel da família no destino do sujeito: “A hereditariedade e o meio que nos alimenta, assim como a nossa classe social, são como cartas de baralho que nos são distribuídas aleatoriamente, antes do jogo começar. Até aí não há nenhuma liberdade de escolha - o mundo dá, e você apenas recebe o que lhe foi dado, sem nenhuma outra opção. Entretanto, a grande pergunta é o que cada um de nós consegue fazer com as cartas recebidas. Pois há os que jogam muito bem com cartas nem tão boas, e há, pelo contrário aqueles que desperdiçam e perdem tudo, mesmo com cartas excepcionais! E esta é toda a nossa liberdade: liberdade de jogar com as cartas que nos foram dadas. Mas mesmo a liberdade de escolher o nosso jogo depende, por ironia, da sorte de cada um, da paciência, da sabedoria, da intuição, do arrojo. Mas essas também não são cartas que nos foram dadas antes do jogo começar, sem nos perguntarem nada? “ Na lógica da psicanálise, o destino é determinado pela busca do que se perdeu na operação da castração, o que quer dizer que quando se escolhe a alienação significante, a história geracional, perde-se uma parte do seu próprio ser que é irrecuperável. Freud construiu, a partir das tragédias de Sófocles e Shakeaspeare, metáforas clínicas da existência humana e embora heróicas, é como homem comum que ele as efetiva, diz Lacan no Seminário da Ética. Uma análise favorece a emancipação do sujeito de sua impregnação ao discurso familiar. Essa tentativa de ruptura pode ser observada na obra de nosso escritor Francisco Dantas em Coivara da Memória: “Tenho pelejado para me libertar da falsa moral e dos hábitos seculares que me foram legados por essa gente, embutindo na minha cabeça de menino a sabedoria de seus provérbios passados de boca em boca, e que nada mais eram senão engenhos tendenciosos, urdidos para resguardar os graúdos da família, para que eles não se desgarrassem nem perdessem os privilégios, e continuassem a procriar, rezar e engabelar os bestas, sempre voltados para a chama de seus cabedais. Tenho tentado em vão me excluir da ascendência dessa cambada empedernida, empenhada em regular as decisões que tomo em pânico – e contra a qual tenho empregado todo o vigor da minha outra banda arrojada e desunida”. Escolhendo o ponto de vista estrutural, Lacan ultrapassa a teoria familiarista freudiana, para centrar a importância da estrutura do sujeito não apenas em sua cena edípica, mas, sobretudo na lógica do inconsciente e o modo singular de seu gozo. Com isso, podemos analisar os impasses que nos são trazidos na clínica de nossa época. Por exemplo, a sociedade “líquido-moderna” - na expressão de Bauman - exige a lógica do consumismo como desafio para preservar a individualidade numa total inversão das regras: a oferta do mercado é para que o sujeito aceite o novo (seja um celular prada, um citroen pallas, coca-zero) em detrimento do conhecido, já ultrapassado. O indivíduo, antes responsável por seus méritos e fracassos, não pode mais exercer sua livre escolha sob o risco de ficar obsoleto e virar lixo se não aderir à síndrome consumista! A individualidade passou a ser um privilégio da era das celebridades, das edições limitadas, que são seguidas a risca pelo consumidor gerando como resultado a homogeneização e o ciclo da permanente insatisfação, motor do consumismo. Quando a condição humana se reduz a uns tantos objetos de consumo e a uma busca imaginária da perfeição do corpo, o sintoma pode ser o que de melhor pode aparecer. A clínica é o lugar onde os sintomas revelam a humanização do sujeito – seu dizer não ao consumo e a possibilidade no reatamento do laço com o semelhante. O psicanalista tem como dever ético estar sempre conectado ao seu tempo e como Lacan já apontava, elaborar o diagnóstico de acordo com a singularidade dos casos. Se as configurações familiares vêm desafiando a norma familiar freudiana, a resposta que o sujeito dá em conformidade com seu desejo não deve deixar de servir ao analista em seu compromisso com a verdade para interrogar a dimensão ética das demandas dos sujeitos. Bibliografia: ARIÉS, P. (1981). História social da criança e da família (D. Flaksman, trad.). Rio de Janeiro: Zahar. BAUMAN, Zygmund. Vida líquida. Rio de Janeiro: Zahar Ed., 2007 ________ Comunidade: a busca por segurança no mundo atual. Rio de Janeiro: J. Zahar, 2003 FREUD, Sigmund - Obras Completas. RJ: Imago, 1977. LACAN, Jacques - Seminário 7: A ética da psicanálise. RJ: Zahar, 1988. ______Seminário 11: Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. RJ: Zahar, 1979. _____ Os complexos familiares. (M. A. Coutinho Jorge & P. M. da Silveira Júnior, trad.). Rio de Janeiro: Zahar. ROUDINESCO, E. (2003). A família em desordem. (R. Aguiar, trad.). Rio de Janeiro: Zahar.

saber fazer com o corpo

Dança e psicanálise: saber fazer com o corpo Alba Abreu Lima CORPO NA PSICANÁLISE Para a medicina o corpo é primário, para a psicanálise é secundário porque só passa a existir pela en-corporação significante ( Lacan, Psicanálise e Medicina, 1966). No Seminário II, Lacan diz que o homem tem um corpo (pg 97) e no Seminário XXIII, ele complementa: “o homem tem um corpo; ele não é um corpo. O corpo lhe é estranho”. Para ter um corpo e considerá-lo como corpo próprio, o sujeito se aliena à imagem narcísica que o Outro lhe sustenta. Desde a 1ª infância o sujeito do inconsciente responde ao investimento significante do Outro (a série sempre vem do Outro) com aceitação ou recusa, tentando fabricar significados num texto que não se esgota. O corpo sustenta não apenas o domínio imaginário da aventura original do estádio do espelho, mas experiências enigmáticas do gozo que vão se agregando, fixando, libidinizando e delineando o deserto de gozo em bordas. No Seminário X, Lacan aborda o objeto a brincando com a homofonia: “ce qu’ on n’ a plus” (algo que já se teve), porque não se pode falar do objeto a não ser como pura escritura. A pista que ele aponta como vestígio das “ruínas metonímicas do objeto” (Seminário V, pg 43) são os objetos oral, anal, escópico ou invocante, que aparecem na fantasia do neurótico. A fantasia e a pulsão são tentativas de recuperação do gozo perdido e o único modo de evocar a perda é nomeando pulsionalmente esses objetos condensadores de gozo. Por isso que o analista não interpreta o gozo, mas a insatisfação inerente à estrutura do sujeito do desejo. Foi por causa da fantasia das histéricas que tomavam a forma da demanda ($^D) que Freud pode escutar a ressonância do significante e que esburacava o corpo na complacência somática pelos efeitos de alíngua (mal entendidos da língua materna). O gozo pulsional recalcado, metaforizado, está subjacente à afecção corporal, seja na histérica ou no obsessivo, o corpo é sensível ao dizer: Rute é bailarina desde os 6 anos de idade e aos 20 procura um analista com a queixa de que não consegue mais sustentar o corpo. No decorrer da análise aparece a bulimia, a anorexia, tentativas de suicídio e vários tratamentos sem sucesso. Considera-se uma “desalojada” e sem lugar. Na infância foi deixada em segundo plano e com uma mãe frágil e pai ausente, ficou a mercê de uma avó severa que preferia sua irmã mais velha. Jogava no corpo qualquer infelicidade e comia nada para não ter de digerir o olhar vigilante e ofensivo da família. Arruma sempre namorados-encrenca como forma de escudo afetivo. Volta a dançar após dois anos de análise, mas não “reconhece seu corpo”. Homem de ferro procura a análise porque há 3 anos a mulher fez uma histerectomia e a partir daí emagrece, perde as forças, até ser detectada uma diabete. O medo de perder as pernas não lhe deixa tocar os pés no chão. O ritual é o de contar passos para escapar da impressão da neuropatia diabética (sintomas da neuropatia diabética são formigamento ou dormência nos pés, pernas, braços ou mãos. Conforme o dano ao nervo vai se agravando, a neuropatia pode prejudicar a comunicação entre o cérebro e os músculos e órgãos, causando dores que enfraquecem o corpo, o que no final pode levar à perda da sensibilidade naquela região. A neuropatia não causa apenas novos problemas de saúde, ela também agrava as complicações já existentes e pode até interferir na vida sexual). O Homem de ferro, sempre potente e poderoso, adolescente mandão, briguento tem medo dessa nova vida sem poder proteger a família, sem poder exercer a força física, suas façanhas em relação ao outro sexo... se transforma numa cabeça que não dá tréguas: pensa nas evitações que tem de fazer durante o dia para não pisar no chão até ter dor de cabeça e insônia. O corpo silencia com o barulho que a cabeça faz. Os neuróticos sempre apresentam na clínica a ameaça de serem reduzidos a um objeto pulsional como uma recordação simbólica do déficit em que eles se posicionam com relação ao gozo. O problema é que o neurótico sempre atribui essa deficiência ao Outro: família, chefe, sociedade... Daí a tese de Lacan no Seminário XI de que a fantasia do neurótico se reduz à pulsão, pois recebendo as palavras estruturadas nos mecanismos de condensação e deslocamento advindas do Outro, recebe também seus ideais – o S1 esculpe o corpo com a marca da castração. CORPO, ARTE E PSICANÁLISE Lacan, no Seminário XXIII afirma que Joyce rompe com o sentido para talhar os pedaços de alíngua que a ele se impuseram. Ou seja, ele articula o real no simbólico (fala e escrita) num texto despido de significações e com isso fabrica um corpo, não um corpo civilizado e apaziguado pela palavra como o corpo do neurótico, mas de uma consistência que suporta o conjunto RSI, mantendo a coesão.

persistindo o médico, consulte os sintomas

“Persistindo o médico, consulte os sintomas”. A frase de Tom Zé demonstra como as consultas aos médicos podem engordar o sintoma de gozo e o sujeito acaba se harmonizando com as significações oferecidas ao seu sintoma. Persistindo o médico, como bem sabe dizer o poeta, pergunte ao sintoma. A direção da clínica psicanalítica é dada pelo sujeito e sua pergunta sobre o sintoma, que, muitas vezes, não é correlativa à doença diagnosticada pelo médico. Nem sempre a psicanálise oferece soluções apaziguadoras, nem sentidos curativos, pois o sofrimento do sintoma é o indicativo de que a resposta da fantasia fracassou na tarefa de alinhavar a divisão subjetiva. Diante da fratura exposta pela vacilação da fantasia, surge a angústia e o questionamento do desejo. A condição de uma análise só é possível diante da necessidade do sujeito em desconhecer o mal que o acomete e sua impossibilidade em se adequar às significações estabelecidas pelos médicos. Diante dessa contingência, o sintoma em sua face de sofrimento, emagrecido e diluído de sua satisfação, travado na repetição, dirige sua questão sintomática a um Outro, exigindo um alívio da angústia. Entretanto, esse questionamento e a resposta do analista dependem da importância que ele reputa à linguagem como causa do sujeito, na medida em que o sujeito é uma função do significante e conseqüentemente, ser de linguagem. Por isso o analista espera uma desconstrução das significações que o sujeito atribuiu a seu sintoma, para, sem julgamento de valor, escutar algo com o recurso da associação livre, sobre o enigma do desejo que se materializou naquele sintoma. É o que Lacan denominou de efeito da histerização do discurso, ou seja, de onde se persistia a busca por uma decifração médica, surge um sujeito decifrador na análise, daquele sentido obscuro do sintoma, a partir de um trabalho sob transferência. Na persistência do sintoma, Lacan (aula de 18/11/75) sentencia: a única arma que temos contra o sintoma é o equívoco. Ou seja, é somente pelo equívoco que pode operar a interpretação do analista se quer abordar o sujeito do desejo. Alba Abreu