O escrito do analista e o desejo de saber
Alba Abreu Lima Projeto Freudiano - 1992
“Só temos escolha entre enfrentar a verdade ou
ridicularizar nosso saber”. Lacan na
Proposição de 09 de outubro de 1967
Os analistas, diante do horror
ao ato analítico encontram, na escrita, a possibilidade de formalização deste
ato. Cada vez que o analista se
interroga sobre aquilo que faz, recorre às formulações de Freud e se utiliza
dos matemas lacanianos para interrogar seu ato; o horror pelas modificações que
ocorrem na vida de um sujeito por efeito de interpretação.
O avanço e a transmissão da
psicanálise são o resultado do movimento particular que cada analista busca
nessa experiência com o saber inconsciente; enquanto analisante e em sua
prática clínica; no trabalho de Cartel e no Passe.
O estatuto do escrito do
analista é uma tentativa de ler e explicar este saber. Saber onde, diz Lacan:
“ o sujeito
vê soçobrar a certeza que ele tomava desta fantasia onde se constitui para cada
um, sua janela sobre o real, o que se percebe é que a tomada do desejo não é
mais que a de um des/ser”,
em uma virada que representa a passagem de analisante
à analista. O que não quer dizer que esse saber tenha a ver com o conhecimento
adquirido da teoria, mas do que se trata é do saber inconsciente.
Só se entende verdadeiramente um texto
psicanalítico quando se aprende a ler o inconsciente. “Leitura do inconsciente”, essa é a forma que
Lacan propõe no Seminário 20, de tornar possível passar o gozo ao dizer. E é o que permite ao sujeito fazer um
percurso desde antes de uma análise, quando o sujeito ainda se encontra no “não
quero saber nada disso” - C. Soler diz que a humanidade não tem desejo de
saber, por isso a psicanálise vai à contra mão das inovações da modernidade.
O sujeito já sabe tudo o que tem de saber
para fins de seu gozo e somente no decorrer da análise, quando pode dirigir o
amor ao saber por obra e graça da transferência, saber suposto, pode então
vislumbrar mais além do gozo e, ao final, Lacan aposta no desejo de saber, modo
de operação para os que posam sustentar essa posição de des-ser e tornar-se
analista.
a escrita do analista
Não há escrita que não seja de
uma língua articulada. A escrita, na
concepção dos pesquisadores, é uma representação visual e durável da linguagem,
que a torna transportável. É um código
que transmite mensagens verbais.
Escrevem-se desde sempre os fatos de linguagem: provérbios, canções,
avisos, apelos ou interdições. É a inscrição visual da palavra falada, tempo
segundo do discurso: Não existe
escrita, sem palavra prévia.
Lacan (seminário 17) diz que a condição da escrita
é que ela se sustente por um discurso. Por isso, o analista escreve sobre como
suporta a demanda sob transferência, como aceita os limites do seu saber e como
esse saber pode vir a ocupar o lugar da verdade no discurso analítico. O
discurso como laço social é um modo de gozar a partir da linguagem e, para
estarmos no mundo civilizado seria preciso um “refreamento das pulsões” ( no
dizer freudiano), o que significa perda de gozo. Todo discurso é, portanto, um
aparelho de gozo sob o olhar de Lacan.
Freud guardava uma relação
muito especial aos seus escritos. Nas
reuniões das quartas-feiras ele apresentava seus informes sobre os casos
clínicos e suas descobertas teóricas antes mesmo de publicá-los: era a sua
“caixa de ressonância”. Sua maneira de
demonstrar a ética psicanalítica: para
que o saber possa estar no lugar da verdade, é necessário que o grande Outro
seja barrado. Freud aceitava o
limite dessa barra, ele desejava acima de tudo escutar aquele insabido – Das
unbewusste. Seus casos
clínicos são comentados até hoje como fracassados pelos especialistas. Seus
“erros” estão colocados em seus escritos. Ele não se preocupava nem modificava
ou corrigia suas publicações, apenas acrescentava PÓS-ESCRITOS, denunciando que a Psicanálise não funciona como uma
ciência exata e nem pretende ser toda.
Lacan retornou a Freud, lendo
os textos originais no alemão. Denunciou
os extravios da teoria pós-freudiana e reafirmou que a disciplina do comentário
de textos de Freud seria uma parte importante na formação dos analistas. A cada
novo Seminário, Lacan escrevia um texto correspondente. Embora, ele mesmo tenha dito que seus “Escritos” não são para serem
compreendidos, eles fazem parte junto com o Seminário de suas importantes
elaborações teóricas.
No Seminário I, Lacan diz que
se a obra de Freud tem um sentido, é que: “a verdade pega o erro pelo cangote, na
equivocação. Explica que nossos atos falhos são atos bem sucedidos. E que, as palavras que tropeçam,
confessam. A verdade está sempre por
detrás: no interior da associação livre, nas imagens do sonho e no sintoma. E
isso é tudo o que se pode escrever sobre um caso clínico para atestar os
efeitos decorrentes.
Schereber, em Memórias de um
Doente dos Nervos, recorre também ao escrito para veicular sua metáfora
delirante como um recurso utilizado para sair do asilo. O analista assim com Schereber, deve sair de
seu consultório, dessa posição “autista” como nomeia Miller, para
escrever. Trabalhar seus escritos com os
colegas, demonstrar como o desejo de saber produzido em sua análise pode
levá-lo a transmitir os efeitos do ato analítico em sua clinica.
O desejo de saber, como condição
essencial ao ato analítico, é, no entanto, insuficiente para a transmissão da
psicanálise. O analista deve se dispor a
se dividir como sujeito, no discurso da histérica, em seus escritos, para
reencontrar os significantes perdidos no seu ofício, restos de supervisões e
relatos de casos. Assim, diante da angústia provocada pelo ato analítico que é
solitário, da certeza da impossibilidade de relação sexual, o analista escreve
seus casos clínicos, sua elaboração de cartel e apresenta nos Encontros.
Lacan, em Mais Ainda, diz:
“Tudo que é escrito parte do fato de que será
para sempre impossível escrever como tal a relação sexual. É daí que há um
certo efeito do discurso que se chama a “ESCRITA”.
A escrita é
então um efeito do discurso analítico.
Ela não visa como a ciência, construir e expor um saber cumulativo
(conhecimento científico). É preciso ir
além: ter uma chance de contribuir com o enunciado de Lacan:
“A
verdade não serve senão para marcar o lugar onde se denuncia o saber”. (Carta aos Italianos)
Enquanto no cartel e nos casos
clínicos se expõe um saber-fazer, no passe acentua-se o próprio discurso
analítico. Ou seja, no discurso
analítico, o agente é o objeto causa de desejo, que está assentado sobre um
saber, situado no lugar da verdade - mola mestra do discurso.
Lacan reconduziu a psicanálise
para a relação entre sujeito e verdade. O sujeito paga ao analista para dizer a
verdade sobre si mesmo. O saber
parte dessa verdade que jamais será dita toda. A psicanálise busca um saber não
sabido e a verdade enquanto valor
lógico.
Lacan, no “Avesso da psicanálise” diz:
“nenhuma
evocação da verdade pode ser feita senão ao se indicar que ela não é acessível
a não ser por um semi-dizer que ela não pode se dizer inteiramente, pelo fato
de que mais-além de sua metade, não há nada a dizer”.
Neste Seminário XVII, Lacan
trabalha com afinco a questão da verdade.
Para isso, fez uma leitura fecunda do Tractatus Lógico-Philosoficus de
Ludwig Wittgenstein. O Tractatus, assim
como a psicanálise, reivindica o direito ao silencio e obedece à lógica do
não-todo:
“Aquilo que não se pode falar, deve-se calar”.
Lacan comenta que no sentido wittgensteiniano,
a verdade é irmã do gozo. A verdade tem
esse efeito de incompletude, assim como o gozo é interditado a quem fala.
Ele afiança: “não há sentido que não seja do desejo” e “não há verdade
senão daquilo que esconde esse desejo de sua falta, fingindo que não quer nada
diante do que encontra”. A verdade seria
então essa ordem que impõe a castração e que o sujeito só pode lidar a partir
da invenção do saber. O inconsciente é a
condição da linguagem e a verdade é inseparável dos efeitos dessa linguagem,
diz Lacan, embora esteja fora do significante.
Para o analista, a verdade
necessita que o analisante vincule em palavras seu desejo, lei da associação
livre. É no momento mesmo que o
analisante é atravessado por um chiste, um ato falho ou um sonho, que a verdade
pode surgir.
Lacan diz que o analista,
enquanto objeto a suporta a função de letra.
Letra a cair; como toda letra, quando se lê, faz dizer.
Na alfabetização das crianças,
costumamos fazer ilustrações das letras com desenhos para que elas fixem na
memória a forma da letra. É a imaginarização da letra. Mas quando essas crianças começam o
aprendizado da leitura, as letras perdem completamente seu valor próprio, em
si, saem da posição de imagem para dar sentido às palavras. As letras perdem sua singularidade para
compor o infinito processo de metonimização da leitura. Por isso que,
inadvertidamente, as professoras cometem falhas reclamando dessa “letra feia”
que a criança começa a escrever, sem ter em conta que agora sim, algo delas
mesmas esta presente ali, não somente uma cópia do ‘22 como dois patinhos na
lagoa’, por exemplo.
No final, quando o desejo de
saber advém pela passagem de analisante a analista e o gozo encontra uma nova
satisfação no bem dizer, o analista cai, como resto, rebotalho, lixo, mas
também letra. E são esses os testemunhos escutados dos
passantes.
Na escrita, assim como quem
aprende a escrever, o analista reencontra as letras caídas da leitura e passa a
colocar essas letras em lugares determinados para dar sentido e fazer laço
social entre os analistas, através da veiculação de seus casos clínicos na
escrita.
ENCONTRO INTERNACIONAL DO
CAMPO FREUDIANO
CARACAS, 1992