terça-feira, 27 de dezembro de 2016

A DOR DE EXISTIR E A MEDICALIZAÇÃO


Vivemos numa civilização dominada pela barbárie da medicalização. 
Cada vez mais nossa medicina do mundo ocidental prescreve drogas com o intento de solucionar a dor e a agonia do sujeito ante o imperativo de felicidade imposto pela demanda moderna, capitalista ou globalizada.

Independente de como denominamos nossa contemporaneidade, o que está em pauta, e acrescentando poder à medicalização, é seu casamento com as terapias rápidas, de resultados ‘imediatos’ e ‘medidos’: desde a TCC, neurolinguística, transpessoal, coaching ou hipnose, isso sem contar com o xamanismo e as diversas seitas que garantem cura.

A ideologia medicamentosa prescreve a todos a mesma droga, embora compreendendo que as enfermidades são diferentes; a guisa de exemplo podemos citar as medicações para TDAH, luto, menopausa, senilidade, adolescência e, mais recentemente, a tristeza. 

Atualmente não parece existir qualquer impedimento ético ou clínico, como podemos constatar tanto nos nossos neuróticos tomando antipsicóticos sem limite, como a medicalização da dor de existir, própria da condição humana.


A psicanálise não desvaloriza os avanços da ciência farmacológica, inclusive porque graças a muitos medicamentos é que existem tantos pacientes psicóticos em tratamento psicanalítico. 

A perspectiva da psicanálise é de que o sujeito exerça sua singularidade, reconheça a alteridade na qual se constituiu, porém sem o curto-circuito da dor de existir, mas oferecendo condições para que possa se questionar sobre esse excesso de gozo e passar ao registro do desejo.

EPIDEMIA DO SÉCULO

A medicalização da dor de existir pelos psicofármacos ganha sua notoriedade na impotência subjetiva, tão difundida como depressão, apresentada pela OMS como a epidemia do século XXI, o que alimentou a voracidade da indústria farmacêutica e a cultura da intoxicação. 

Advertidos por Freud, em “Mal estar na civilização”, onde afirmava que, diante do sofrimento e da infelicidade do mundo moderno - falta de ideais que reduzia o humano a três determinantes: o corpo biológico, o mundo externo e as relações com os outros - desde então considerava que o homem não dispunha de outros meios a não ser forjar novas ilusões a partir de três escolhas inconscientes que são a neurose, a intoxicação e a psicose. 

Isso quer dizer que a cultura da drogadição já estava prevista em Freud, como
apontando que quando a religião falha em responder, a droga cumpre o papel de manter um ideal fora da lei simbólica, já que para qualquer sujeito, qualquer droga é possível.

Em “Estruturas clinicas y salud mental”, Nominé observa que as seitas são fundadas nesse ideal de uniformidade. De preferência recrutam e seduzem sujeitos ‘deprimidos’, que perderam suas marcas simbólicas e encontram na ilusão de unidade com seus irmãos idênticos em torno de um líder carismático ou delirante, que os protege da alteridade. Na seita, no fanatismo (poderíamos anexar aqui), a ilusão da neurose infantil é mantida e o sujeito vive a perversão polimorfa, se negando a considerar a lei da interdição do incesto. Lacan diria que dessa forma fazem a existência da relação sexual. Com isso, esses sujeitos não conseguem produzir o mito individual do neurótico, pois não levam em conta o desejo do Outro.

Se em ‘Psicologia das massas’, Freud aborda o enlaçamento do grupo pelo Eros, colocando ainda um chefe no lugar de ideal, nos anos ’20, em sua visão mais pessimista, inclui o thanatos como o que estaria fora e ameaçando o grupo.

 Interessante notar que são os jovens de classe média e alta que aderem ao Estado Islâmico. Sabemos hoje que são jovens educados, habituados ao uso da internet, porém afundando, se drogando, sentindo-se fracassados, desiludidos com as crenças políticas, que perderam o rumo do desejo e caem fascinados pela promessa de ideais imaginários: glória, poder e dinheiro. Maajid Nawaz, em seu livro “Radical” afirma que ao contrário dos protestos estudantis dos anos ’60, ao utilizar a religião e o multiculturalismo como fachada, esse fanatismo do Estado Islâmico dá o rótulo de racismo e intolerância a qualquer opositor. 
Ou seja, a geração que foi simpatizante socialista ocupa cargos de gestão nessa ideologia.

Nesse sentido é que os canalhas podem amontoar riquezas e prestígio, fazendo-se de Outro, senhor dos desejos dos discípulos que se sacrificam para estar nas boas graças do líder. Enfraquecendo as balizas simbólicas pelo discurso capitalista, que reduz o objeto do desejo ao objeto da demanda e da necessidade, será que com isso preparamos uma geração para o registro da irresponsabilidade?

 Será que o capitalismo avassalador impõe as condições da chamada epidemia da depressão em nossa época?

Lacan apregoa que o sujeito é sempre responsável, mesmo que dependa do modo de relação com o Outro, ainda assim ele elege sua posição de resposta.

 A depressão, assim como a obesidade, a anorexia, a bulimia, são índices do excesso que vem do Outro, puro gozo. Izcovich, em “A depressão na modernidade”, aponta para o caráter de denúncia que esses casos
impõem ao sistema capitalista, de uniformidade do desejo, objetos a consumir, direito ao gozo, narcinismo, sujeitos interconectados.

 O sujeito atual se vê impossibilitado na sua habilidade de resposta ao sofrimento – seja luto ou algum mal estar – que pode advir num crescimento subjetivo.

Na depressão fica escancarado o ‘não quero saber nada sobre a causa do desejo’ do sujeito, que elege o gozo. A subjetivação do desejo implicaria numa passagem pela angústia e é disso que o sujeito tenta se livrar, sob o custo de paralisar. A depressão seria então um muro que o sujeito ergue para tergiversar a castração, uma máscara de defesa frente ao desejo do Outro, antecipando o sinal de perigo, sem constituir um sintoma, inibindo as funções do EU.

CLINICA PSICANALÍTICA

A prática psicanalítica depende da posição na qual o analista opera. Nem sempre quem busca um analista transforma-se em analisante, mas é o analista quem não deve recuar de seu ato visando outra finalidade para, por exemplo, desejar a cura do paciente.

Na conjuntura atual, com mínimas probabilidades de aparecimento da singularidade dos sujeitos, no curto-circuito que o sistema capitalista estabelece - o sujeito e seus objetos - a psicanálise oferece uma saída que não a intoxicação, nem a depressão.

Soler, em “Declinações da angústia”, fala de uma ‘solidão histórica’ para definir esse modo de cada um com seu gozo, regime do ‘narcinismo’. Os sujeitos se dedicam às próprias satisfações investidas na denegação da angústia. 

Foi o que Bauman, em sua recente obra “Babel” chamou de ‘solitários interconectados: ‘Assumir responsabilidades é um fardo, melhor ser espectador de um acontecimento divulgado na mídia do que fazer seu próprio trabalho de interpretação, a dura existência depende da eletrônica, numa época onde a comunicação destrói a comunicação’, uma bela descrição do que acontece no despedaçamento dos laços sociais.

Cada caso em análise tem sua trajetória única, ainda que, em todos os casos, a depressão só seja considerada pelo analista ao tornar-se um sintoma para o sujeito. 
Somente se na repetição de suas dores possa ser introduzido um enigma: o que isso quer dizer? 

A partir daí se coloca em funcionamento a trama teórica que sustenta a prática: transferência, inconsciente, repetição e pulsão. Contudo, antes de qualquer coisa, o diagnóstico diferencial: melancolia, “a sombra da morte caída sobre o objeto” ( Freud, luto e melancolia) ou depressão neurótica?

A definição do diagnóstico é fundamental na direção do tratamento e mesmo na depressão neurótica ainda há de se saber de que modo se deu a relação do sujeito com o significante, pois aqui se trata de conceder a mobilização do inconsciente.

Interessante notar que quando o deprimido chega ao analista, uma pergunta acompanha: 
Por que fulana está tão deprimida se tem tudo? 
Não lhe falta nada, por que essa infelicidade?

 Diante da premissa de todos iguais, todos felizes, mesmos modelos e objetos de consumo, o discurso analítico, diz Lacan, em “Televisão”, é o único que pode subverter o discurso capitalista:
 ‘A tristeza, por exemplo, é qualificada de depressão ao lhe conferir como suporte a alma...Não se trata , porém, de estado d’alma, é simplesmente uma falta moral...: um pecado, o que quer dizer, covardia moral, que só se situa, em última instância, do dever de bem dizer ou de orientar-se no inconsciente, na estrutura.’ 

Ou seja, a depressão é uma economia com relação ao desejo, porque na neurose o sujeito gasta, se movimenta para alcançar o desejo.

A política do analista é encarar qualquer risco perante o mapa pessimista da atualidade. Enquanto as psicoterapias acomodam o sujeito aos ideais da sociedade de nossa época, transmitindo valores donde saber e verdade estão em total harmonia, prometendo a identificação e o empuxo ao gozo, a psicanálise rebate como uma experiência subversiva que conduz o analisante a interrogar o saber universal para conquistar um saber particular.

Em “Radiofonia” Lacan pergunta: ‘será que os analistas serão capazes de demonstrar que vale a pena crer no sintoma?’

A psicanálise, ao contrário do que apregoam seus críticos, não se encontra num impasse histórico em relação aos fármacos que dizem oferecer alívio imediato ao desamparo sem passar pela angústia. O que tem se verificado na prática clinica é que as chamadas ‘crises de pânico’ se proliferam com muito apelo à significação, apesar e talvez até, por causa das medicações cada vez mais ineficazes para o que escapa ao sentido do desejo inconsciente.

Por fim, a tristeza, a decepção que em alguns momentos surgem no caminho do sujeito rumo ao desejo e paralisam, poderá, no encontro com um analista, subjetivar e demandar um saber que não se sabe. 

Um saber que, no decorrer da análise, por vezes se anuncia como um dizer impossível – angústia - mas ainda assim, única via de acesso lógico ao desejo. No final será possível aceder ao desejo mais além da angústia, mas, para tal, será preciso um passo a mais na direção do retorno à clinica.