AMOR EM TEMPOS DE
SOLIDÃO
Alba Abreu Lima
“Olha só essa casa vazia, nossos filhos
esparramados pelo mundo, e nós dois sozinhos outra vez, como no começo.”
(García
Márquez - Cem anos de solidão)
O amor em tempos
de solidão foi um título escolhido para homenagear García Marquez, articulando
seus livros O amor em tempos de cólera
e Cem anos de solidão e, ao mesmo
tempo, tratar de um tema vigente na atualidade: o amor diante da fragilidade e
incerteza dos compromissos afetivos. Para tal, abordaremos a leitura lacaniana
do Seminário XX, de onde retiramos a
questão: “de que se trata então no amor?” articulando com as leituras de Bauman
e Lipovetsky que se dedicam ao estudo do laço amoroso contemporâneo.
A literatura é uma
das maiores fontes de expressão do desejo humano, porque apresenta a palavra
plena, verdadeira, embora com estrutura de ficção. O texto se transforma num
produto da trama dialética entre o sujeito e a pólis, torna-se um
intricado de signos e cada leitor vai apreciá-lo com os instrumentos de sua
época. Não é de hoje que poetas e escritores tecem e remendam em seus escritos,
as inquietações dos amantes e o sofrimento das paixões. Mas não só a literatura
se interessa pelo desejo e as formas do amor do sujeito.
Uma relação
amorosa funda a psicanálise quando Freud elabora um conceito novo a partir dos
motivos da interrupção do tratamento de Anna O. por Breuer. Conjugando amor e
desejo, Freud concebe a transferência como suporte de um enamoramento
idealizado do analisante pelo analista, em que uma neurose artificial se
instala para subtrair as manifestações sintomáticas e instrumentalizar o acesso
ao gozo recalcado. Nesse inédito laço amoroso, ele deduz, a partir de sua
investigação da fantasia das histéricas, um importante elemento sexual e o
complexo de castração, arcabouço de sua teoria. Segundo Freud, as escolhas
amorosas se dão como revivência das relações de prazer com os objetos infantis,
experiências de satisfação que formam um molde para o investimento libidinal
futuro.
No decorrer de
seus estudos clínicos sobre o dispositivo da transferência, ele afirma:
“Não temos o direito de contestar que o estado amoroso que faz seu aparecimento
no decurso do tratamento analítico tenha o caráter de um amor genuíno”.
Consideração similar faz Lacan no Seminário
XX, quando insiste que só há um modo de operar no discurso analítico: a via
singular do amor. Mas não é o primeiro seminário em que ele aborda o tema. Anteriormente,
já tinha situado, no Seminário VII,
os três ideais postos para a experiência analítica, sendo que o primeiro, “o
ideal do amor” Assim ele formula:
“Por que a análise, que forneceu uma mudança de
perspectiva tão importante sobre o amor, colocando-o no centro da experiência
ética, que forneceu uma denotação original, certamente distinta do modo pelo
qual o amor até então fora situado pelos moralistas e pelos filósofos na
economia da relação inter-humana, por que a análise não foi mais longe no
sentido da investigação daquilo que devemos chamar, propriamente falando, de
uma erótica?”.
Resumindo: enfrentar
a estranheza do gozo com o recurso do amor de transferência para liberar a
verdade do desejo do sujeito seria a proposta lacaniana para o saber-fazer
analítico. Sua questão fundamental - como se comporta o sujeito no amor – pode
ser respondida com os caminhos para a compreensão da transferência e do desejo
de saber. Não há possibilidade de uma análise se não existir uma “enamoração”
do analisante pelo saber do analista, única chance de uma produção da verdade
da castração.
No Seminário IX, Lacan já anunciava não
existir um sujeito do amor como habitualmente falamos em sujeito do desejo,
porque no amor trata-se é de uma ‘vítima’. Ele complementa no Seminário
X:
“eu te identifico, a ti, a quem falo, a ti mesmo, ao objeto que a ti mesmo
falta, isto é, por esse circuito onde sou obrigado a passar para alcançar o
objeto do meu desejo, cumpro justamente por ele (tu) aquilo que ele procura”. Em outras palavras, o parceiro teria de cumprir a
exigência de se vestir de objeto no apaixonamento. Tal qual quando o analista
em sua prática “se deixa vestir” com todas as cores dos objetos que fizeram
parte da história do sujeito, principalmente da sua infância e até mesmo os
quais ele não recorda, mas repete no agir com o analista.
A clínica nos tem
revelado um estilo do amor contemporâneo que aponta para os extremos, excesso e
falta, no vínculo amoroso. Os homens buscando desempenho, sintomatizando a
falta dele e as mulheres “enlouquecidas”. Por que dizemos que as mulheres estão
cada vez mais loucas, se desde Ovídio existiam ‘mil gênios’ a serem
decodificados? Em A Arte de amar, ele
diz: “o coração das mulheres é muito variável; acharás mil gênios diferentes;
emprega, pois mil modos diferentes para conquistá-las”. Inês Pedrosa, escritora
ficcionista na nova geração portuguesa, é quem melhor traduz o fenômeno “que é
feito estar doente de uma folia” (Chico Buarque: “O que será”), quando afirma
no romance Nas tuas mãos, não haver
nada mais cruel do que um amor perfeito: “ataca, sobretudo em horas ou pessoas
de plena distração, à revelia dessa confortável invenção humana a que chamamos
razão”. O escritor, assim como o analista, está advertido: não existe amor sem
ódio, pois a própria função do amor é feita dessa ambigüidade, já que sua
essência é a demanda nunca cumprida. No Seminário XX, Lacan chega a inventar
uma palavra para exemplificar esse “fenômeno”: amódio (hainamoration = amor + ódio, em francês). Muito embora, para investigar a condição
imaginária e narcísica do amor-paixão, será preciso rever a formulação
freudiana de pulsão de morte e compreender que, em muitos casos, o amor não é
suficiente para conter o gozo.
Por que tanto interesse
da psicanálise pelo amor?
Em primeiro lugar
porque na clínica fala-se, sobretudo, da vida amorosa. Seja nas lembranças dos
primeiros e consagrados objetos da infância, dos amores inconciliáveis da
adolescência pelo encontro com o sexo, seja pelas diferentes formas que tem o
homem e a mulher de habitarem a linguagem...Em seguida, porque a transferência
é o único instrumento que se tem para abordar o saber, saber que conduz à
verdade do sujeito. Nesse caso, o amor necessita apoio logístico no
significante, são necessárias palavras, campo da fala, do discurso.
No entanto a
psicanálise pensa o amor como os escritores o traduzem: a revelação das
condições de gozo que fundam para cada um seu modo de estar no mundo, sua dor
de existir. Diferentemente dos psicoterapeutas que julgam na terapia de casal
que dois sujeitos podem chegar a formar uma célula, a psicanálise acredita que cada
um dos seres de linguagem podem chegar numa análise, nada breve, a algo do que
ficou depositado como lalíngua (
aquilo que o define como único, impressão digital que contém os registros de
sua diferença), canto da sereia materno, enredado nos movimentos de
constituição subjetiva, mas que podem ser abordados numa análise por terem
afe(c)tado o sujeito. Nada melhor do que a literatura para ensinar o verdadeiro
desencontro do amor.
Garcia Marquez
constrói em O amor em tempos de cólera
uma história correlativa à obra prima inigualável em toda literatura: Cem anos
de solidão. Nos dois romances o amor esbarra no impossível, nas desventuras,
num andamento que chega a ser musical, pois são pautados numa realidade
imprevisível e que captura o leitor numa viagem aos amores temporários,
definitivos, desfeitos, devotados, sem fins... Enfim, define o amor como a
característica mais intensamente humana e ao mesmo tempo, com sua verve, o
autor reflete um brilho bem humorado de elementos mágicos sem perder o embalo
da narrativa.
O fato de um
fantasma morar na casa foi um dos motivos do casal Buendia se mudar para um
local ermo e ali fundaram uma família, esse é o mote para Cem Anos de solidão.
Não uma família comum, aliás, nem existe uma família comum, mas uma cidade
numerosa e que passa por sete gerações, aonde o autor vai processando sua trama
complexa de muitos amores, perdas, reencontros, utilizando-se da fantasia para também
metaforizar as relações de poder da América Latina.
Em Amor em tempos de cólera o amor
apresenta outra face, não mais aquela protagonizada por Úrsula, do amor maduro,
fonte de toda a energia que emana para os personagens da trama, porém mostra as
diversas maneiras de apaixonamento e novamente como as relações de poder vão separar
ou juntar os amantes. O que une as duas narrativas é a temática existencial, o
amor, o processo do envelhecimento e a morte.
Muito se fala na
solidão do homem contemporâneo, mais ainda das relações amorosas e suas
dificuldades acentuadas pelo modelo narcisista de nossa época.
Bauman, sociólogo
polonês cuja produção margeia a filosofia, escreve que a modernidade líquida em
que vivemos gera a fragilidade dos laços humanos – denominados por ele de Amor
Líquido. Os especialistas em auto-ajuda estão ávidos pela descoberta de novas
fórmulas de convivência que, ao mesmo tempo, não impliquem compromisso! As
relações virtuais ganham força por parecerem mais simples e descartáveis, por
obra da tecla deletar. Bauman adverte sobre a intrincada e complexa conexão
entre amor e morte: ambos são inesperados, imprevistos e atemorizam. Em sua
definição, o amor “significa abrir-se ao destino”, com isso não seria possível
separar o acaso e com ele a finitude do biológico. A sobrevivência de um
comunidade, isso fica bem claro em Cem
Anos de Solidão, depende da criatividade, inventividade, coragem e
determinação em aceitar os riscos pelos atos e as conseqüências.
Gilles Lipovetsky,
em A felicidade paradoxal, analisa a
sociedade do hiperconsumo: “as insatisfações crescem mais depressa que as
ofertas de felicidade. Consome-se mais, vive-se menos, quanto mais explodem os
apetites de aquisição, mais se aprofundam os descontentamentos individuais” Com isso, PENIA erige-se em figura
emblemática do hiperconsumidor, símbolo trágico da opulência. Ele considera que
em nenhuma época da história se exprimiram tantas palavras para analisar os
sentimentos. Seja nas revistas femininas, na mídia, o discurso amoroso é
plenamente valorizado! No entanto, cada vez mais se reconhece a dificuldade de
“amor pra toda a vida” como tempo de relações temporárias, de sexo-proeza,
modelo competitivo – super-homens e mulheres maravilhas – no fim desaba no
desencanto amoroso porque a satisfação libidinal não segue as leis do
desempenho, diríamos com a psicanálise.
Lacan no Seminário XX define o amor como
narcísico e impotente, uma vez que o desejo de ser Um está fadado ao fracasso;
daí a fórmula: a relação sexual não existe. Mais adiante ele complementa que
homens e mulheres são significantes, por isso quando se ama necessariamente não
se trata apenas de sexo, como se supõe pensar o sujeito do hiperconsumo.
Falar de amor já se
trata de gozo e o analista deve estar advertido de que a demanda de amor do só
deve ser sustentada na paixão de querer saber - a ignorância - sob o risco de o
ódio eclipsar toda a travessia percorrida nos caminhos do pulsional. O amor,
diz Lacan no mesmo Seminário, é o pivô de tudo que se institui pela experiência
analítica. Assim como é o amor que vem suprir a falta da relação sexual: “para
que eles se arranjem, para que eles se acomodem para que, mancos, mancando,
cheguem a dar uma sombra de vida ao sentimento dito amor”.
Do amor, a
psicanálise e a literatura ensinam, estamos na arena do impossível e se a
análise preza seu conceito é porque, mesmo não cessando de não se escrever,
ainda assim é o que permite o acesso ao Outro, e disso nunca escapamos.
Curso de psicanálise em extensão - A teoria e a clínica de Freud a Lacan - 2010: O AMOR E O DIVÃ
Excelente texto Alba! Estarei de olho no blog aguardando os proximos..
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