sexta-feira, 23 de novembro de 2012





AMOR EM TEMPOS DE SOLIDÃO
Alba Abreu Lima

Olha só essa casa vazia, nossos filhos esparramados pelo mundo, e nós dois sozinhos outra vez, como no começo.
(García Márquez - Cem anos de solidão)

O amor em tempos de solidão foi um título escolhido para homenagear García Marquez, articulando seus livros O amor em tempos de cólera e Cem anos de solidão e, ao mesmo tempo, tratar de um tema vigente na atualidade: o amor diante da fragilidade e incerteza dos compromissos afetivos. Para tal, abordaremos a leitura lacaniana do Seminário XX, de onde retiramos a questão: “de que se trata então no amor?” articulando com as leituras de Bauman e Lipovetsky que se dedicam ao estudo do laço amoroso contemporâneo.
A literatura é uma das maiores fontes de expressão do desejo humano, porque apresenta a palavra plena, verdadeira, embora com estrutura de ficção. O texto se transforma num produto da trama dialética entre o sujeito e a pólis, torna-se um intricado de signos e cada leitor vai apreciá-lo com os instrumentos de sua época. Não é de hoje que poetas e escritores tecem e remendam em seus escritos, as inquietações dos amantes e o sofrimento das paixões. Mas não só a literatura se interessa pelo desejo e as formas do amor do sujeito.
Uma relação amorosa funda a psicanálise quando Freud elabora um conceito novo a partir dos motivos da interrupção do tratamento de Anna O. por Breuer. Conjugando amor e desejo, Freud concebe a transferência como suporte de um enamoramento idealizado do analisante pelo analista, em que uma neurose artificial se instala para subtrair as manifestações sintomáticas e instrumentalizar o acesso ao gozo recalcado. Nesse inédito laço amoroso, ele deduz, a partir de sua investigação da fantasia das histéricas, um importante elemento sexual e o complexo de castração, arcabouço de sua teoria. Segundo Freud, as escolhas amorosas se dão como revivência das relações de prazer com os objetos infantis, experiências de satisfação que formam um molde para o investimento libidinal futuro.
No decorrer de seus estudos clínicos sobre o dispositivo da transferência, ele afirma: “Não temos o direito de contestar que o estado amoroso que faz seu aparecimento no decurso do tratamento analítico tenha o caráter de um amor genuíno”. Consideração similar faz Lacan no Seminário XX, quando insiste que só há um modo de operar no discurso analítico: a via singular do amor. Mas não é o primeiro seminário em que ele aborda o tema. Anteriormente, já tinha situado, no Seminário VII, os três ideais postos para a experiência analítica, sendo que o primeiro, “o ideal do amor” Assim ele formula:
Por que a análise, que forneceu uma mudança de perspectiva tão importante sobre o amor, colocando-o no centro da experiência ética, que forneceu uma denotação original, certamente distinta do modo pelo qual o amor até então fora situado pelos moralistas e pelos filósofos na economia da relação inter-humana, por que a análise não foi mais longe no sentido da investigação daquilo que devemos chamar, propriamente falando, de uma erótica?”.
Resumindo: enfrentar a estranheza do gozo com o recurso do amor de transferência para liberar a verdade do desejo do sujeito seria a proposta lacaniana para o saber-fazer analítico. Sua questão fundamental - como se comporta o sujeito no amor – pode ser respondida com os caminhos para a compreensão da transferência e do desejo de saber. Não há possibilidade de uma análise se não existir uma “enamoração” do analisante pelo saber do analista, única chance de uma produção da verdade da castração.
No Seminário IX, Lacan já anunciava não existir um sujeito do amor como habitualmente falamos em sujeito do desejo, porque no amor trata-se é de uma ‘vítima’. Ele complementa no Seminário X: “eu te identifico, a ti, a quem falo, a ti mesmo, ao objeto que a ti mesmo falta, isto é, por esse circuito onde sou obrigado a passar para alcançar o objeto do meu desejo, cumpro justamente por ele (tu) aquilo que ele procura”. Em outras palavras, o parceiro teria de cumprir a exigência de se vestir de objeto no apaixonamento. Tal qual quando o analista em sua prática “se deixa vestir” com todas as cores dos objetos que fizeram parte da história do sujeito, principalmente da sua infância e até mesmo os quais ele não recorda, mas repete no agir com o analista.
A clínica nos tem revelado um estilo do amor contemporâneo que aponta para os extremos, excesso e falta, no vínculo amoroso. Os homens buscando desempenho, sintomatizando a falta dele e as mulheres “enlouquecidas”. Por que dizemos que as mulheres estão cada vez mais loucas, se desde Ovídio existiam ‘mil gênios’ a serem decodificados? Em A Arte de amar, ele diz: “o coração das mulheres é muito variável; acharás mil gênios diferentes; emprega, pois mil modos diferentes para conquistá-las”. Inês Pedrosa, escritora ficcionista na nova geração portuguesa, é quem melhor traduz o fenômeno “que é feito estar doente de uma folia” (Chico Buarque: “O que será”), quando afirma no romance Nas tuas mãos, não haver nada mais cruel do que um amor perfeito: “ataca, sobretudo em horas ou pessoas de plena distração, à revelia dessa confortável invenção humana a que chamamos razão”. O escritor, assim como o analista, está advertido: não existe amor sem ódio, pois a própria função do amor é feita dessa ambigüidade, já que sua essência é a demanda nunca cumprida. No Seminário XX, Lacan chega a inventar uma palavra para exemplificar esse “fenômeno”: amódio (hainamoration = amor + ódio, em francês). Muito embora, para investigar a condição imaginária e narcísica do amor-paixão, será preciso rever a formulação freudiana de pulsão de morte e compreender que, em muitos casos, o amor não é suficiente para conter o gozo.
Por que tanto interesse da psicanálise pelo amor?
Em primeiro lugar porque na clínica fala-se, sobretudo, da vida amorosa. Seja nas lembranças dos primeiros e consagrados objetos da infância, dos amores inconciliáveis da adolescência pelo encontro com o sexo, seja pelas diferentes formas que tem o homem e a mulher de habitarem a linguagem...Em seguida, porque a transferência é o único instrumento que se tem para abordar o saber, saber que conduz à verdade do sujeito. Nesse caso, o amor necessita apoio logístico no significante, são necessárias palavras, campo da fala, do discurso.
No entanto a psicanálise pensa o amor como os escritores o traduzem: a revelação das condições de gozo que fundam para cada um seu modo de estar no mundo, sua dor de existir. Diferentemente dos psicoterapeutas que julgam na terapia de casal que dois sujeitos podem chegar a formar uma célula, a psicanálise acredita que cada um dos seres de linguagem podem chegar numa análise, nada breve, a algo do que ficou depositado como lalíngua ( aquilo que o define como único, impressão digital que contém os registros de sua diferença), canto da sereia materno, enredado nos movimentos de constituição subjetiva, mas que podem ser abordados numa análise por terem afe(c)tado o sujeito. Nada melhor do que a literatura para ensinar o verdadeiro desencontro do amor.
Garcia Marquez constrói em O amor em tempos de cólera uma história correlativa à obra prima inigualável em toda literatura: Cem anos de solidão. Nos dois romances o amor esbarra no impossível, nas desventuras, num andamento que chega a ser musical, pois são pautados numa realidade imprevisível e que captura o leitor numa viagem aos amores temporários, definitivos, desfeitos, devotados, sem fins... Enfim, define o amor como a característica mais intensamente humana e ao mesmo tempo, com sua verve, o autor reflete um brilho bem humorado de elementos mágicos sem perder o embalo da narrativa.
O fato de um fantasma morar na casa foi um dos motivos do casal Buendia se mudar para um local ermo e ali fundaram uma família, esse é o mote para Cem Anos de solidão. Não uma família comum, aliás, nem existe uma família comum, mas uma cidade numerosa e que passa por sete gerações, aonde o autor vai processando sua trama complexa de muitos amores, perdas, reencontros, utilizando-se da fantasia para também metaforizar as relações de poder da América Latina.
Em Amor em tempos de cólera o amor apresenta outra face, não mais aquela protagonizada por Úrsula, do amor maduro, fonte de toda a energia que emana para os personagens da trama, porém mostra as diversas maneiras de apaixonamento e novamente como as relações de poder vão separar ou juntar os amantes. O que une as duas narrativas é a temática existencial, o amor, o processo do envelhecimento e a morte.  
Muito se fala na solidão do homem contemporâneo, mais ainda das relações amorosas e suas dificuldades acentuadas pelo modelo narcisista de nossa época.
Bauman, sociólogo polonês cuja produção margeia a filosofia, escreve que a modernidade líquida em que vivemos gera a fragilidade dos laços humanos – denominados por ele de Amor Líquido. Os especialistas em auto-ajuda estão ávidos pela descoberta de novas fórmulas de convivência que, ao mesmo tempo, não impliquem compromisso! As relações virtuais ganham força por parecerem mais simples e descartáveis, por obra da tecla deletar. Bauman adverte sobre a intrincada e complexa conexão entre amor e morte: ambos são inesperados, imprevistos e atemorizam. Em sua definição, o amor “significa abrir-se ao destino”, com isso não seria possível separar o acaso e com ele a finitude do biológico. A sobrevivência de um comunidade, isso fica bem claro em Cem Anos de Solidão, depende da criatividade, inventividade, coragem e determinação em aceitar os riscos pelos atos e as conseqüências.
Gilles Lipovetsky, em A felicidade paradoxal, analisa a sociedade do hiperconsumo: “as insatisfações crescem mais depressa que as ofertas de felicidade. Consome-se mais, vive-se menos, quanto mais explodem os apetites de aquisição, mais se aprofundam os descontentamentos individuais”  Com isso, PENIA erige-se em figura emblemática do hiperconsumidor, símbolo trágico da opulência. Ele considera que em nenhuma época da história se exprimiram tantas palavras para analisar os sentimentos. Seja nas revistas femininas, na mídia, o discurso amoroso é plenamente valorizado! No entanto, cada vez mais se reconhece a dificuldade de “amor pra toda a vida” como tempo de relações temporárias, de sexo-proeza, modelo competitivo – super-homens e mulheres maravilhas – no fim desaba no desencanto amoroso porque a satisfação libidinal não segue as leis do desempenho, diríamos com a psicanálise.  
 Lacan no Seminário XX define o amor como narcísico e impotente, uma vez que o desejo de ser Um está fadado ao fracasso; daí a fórmula: a relação sexual não existe. Mais adiante ele complementa que homens e mulheres são significantes, por isso quando se ama necessariamente não se trata apenas de sexo, como se supõe pensar o sujeito do hiperconsumo.
Falar de amor já se trata de gozo e o analista deve estar advertido de que a demanda de amor do só deve ser sustentada na paixão de querer saber - a ignorância - sob o risco de o ódio eclipsar toda a travessia percorrida nos caminhos do pulsional. O amor, diz Lacan no mesmo Seminário, é o pivô de tudo que se institui pela experiência analítica. Assim como é o amor que vem suprir a falta da relação sexual: “para que eles se arranjem, para que eles se acomodem para que, mancos, mancando, cheguem a dar uma sombra de vida ao sentimento dito amor”.
Do amor, a psicanálise e a literatura ensinam, estamos na arena do impossível e se a análise preza seu conceito é porque, mesmo não cessando de não se escrever, ainda assim é o que permite o acesso ao Outro, e disso nunca escapamos.
Curso de psicanálise em extensão - A teoria e a clínica de Freud a Lacan - 2010: O AMOR E O DIVÃ

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