sexta-feira, 23 de novembro de 2012

PRA QUE RIMAR AMOR E DOR


PRA QUE RIMAR AMOR E DOR
Capítulo VI
O laço conjugal: pra que rimar amor e dor*
Eu vou lhe dar a decisão  
botei na balança e você não pesou  
botei na peneira e você não passou  
mora na filosofia  
pra que rimar amor e dor  
se seu corpo ficasse marcado  
por lábios ou mão carinhosas  
eu saberia, ora vai mulher...  
a quantos você pertencia  
não vou me preocupar em ver  
teu caso não é de ver pra crer  
tá na cara ”
(Mora na filosofia de Monsueto e A. Pessoa)
O amor tem sido objeto de prosa e verso na literatura e em inúmeros artigos psicanalíticos, renovando sua face enigmática e louca. A palavra ‘amor’ é derivada do latim -“amore”-, que significa afeição, compaixão ou satisfação. Falamos em Eros, quando o amor está personificado numa deidade: Eros, o mais belo dos mortais, deus grego do amor e do desejo, era filho do Caos - vazio original do universo. Tinha o poder de unir os elementos do caos ao cosmo, um mundo organizado. Ganhou diferentes versões e Platão o descreveu como filho de Poro (expediente) e Penia (pobreza), daí que a essência do amor seja conhecida como essa permanente busca de satisfação. Eros introduz a dialética do desejo: a concepção de infinitude e de movimento metonímico. Eros está impregnado de Tânatos, cujo fascínio da morte ronda e delimita suas fronteiras.
A literatura se constitui como uma das maiores fontes de expressão do desejo humano, pois tem a possibilidade da palavra verdadeira, isto é, com estrutura de ficção. O texto se transforma num produto da trama dialética entre o sujeito e a pólis, torna-se um intricado de signos e cada leitor vai apreciá-lo com os instrumentos de sua época. Se não, como apreciaríamos tanto Shakespeare, Cervantes ou Ovídio?
O analista escreve sobre como suporta a transferência, como aceita os limites do saber e como o saber pode vir a ocupar o lugar da verdade no discurso analítico. Freud é considerado um dos melhores escritores de sua época pelo estilo literário para além da transmissão e formulação de conceitos teóricos. Assim como a literatura, a função do escrito na psicanálise não é modelada por uma cientificidade ou tecnicismo, mas tudo o que é escrito, define Lacan no Seminário XX¹, “parte do fato de que será para sempre impossível escrever como tal a relação sexual. É daí que há um efeito de discurso que se chama escrita”. Portanto, não é de hoje que poetas e escritores tecem e remendam em seus escritos, as inquietações dos amantes e o sofrimento das paixões.
Histórico:
A história do amor romântico, que conhecemos na atualidade e veiculada pela literatura como eternamente insatisfeito, se inicia no Reino dos Cátaros em Languedoc – langue=língua doc=documentada — no século XII. Até essa época, a tragédia predominava na civilização cristã ocidental com o tema do amor impossível. Os cátaros, cultos e refinados habitantes isolados nas rochas do sul da França, com o conhecimento da língua e sendo severos críticos da Igreja Católica, que no século XI vivia na luxúria desmedida, cultuavam o mundo espiritual numa Igreja do Amor a qual pregava a harmonia entre os seres humanos. Rougemont, em História do Amor Ocidental², afirma terem surgido os trovadores nessa atmosfera do catarismo para exprimir o amor cortês : o amor que rima com dor. Além da produção de um novo estilo lingüístico, uma poética e ética dedicada ao culto da dama, revolucionam a concepção do amor numa retórica do romance, este originado no mito.
Lacan, em seu Seminário sobre A Ética³, leva em consideração o amor cortês como a expressão do verdadeiro amor, pois no exercício poético dos trovadores foi constituído um objeto (feminino) inacessível. Se na tragédia tratava-se de um amor impossível, no qual o herói trágico era portador de um destino adverso, destrutivo aos outros e a si mesmo, no amor cortês, a renúncia ao objeto amado provoca a criação poética no bem dizer da sublimação.
O amor na psicanálise
Uma relação amorosa funda a psicanálise quando Freud elabora um conceito novo a partir dos motivos da interrupção do tratamento de Anna O. por Breuer. Conjugando amor e desejo, Freud concebe a transferência como suporte de um enamoramento idealizado do analisante pelo analista, em que uma neurose artificial se instala para subtrair as manifestações sintomáticas e instrumentalizar o acesso ao gozo recalcado. Nesse inédito laço amoroso, ele deduz, a partir de sua investigação da fantasia das histéricas, um importante elemento sexual e o complexo de castração, arcabouço de sua teoria.
Segundo Freud, as escolhas amorosas se dão como revivência das relações de prazer com os objetos infantis, experiências de satisfação que formam um molde para o investimento libidinal futuro.
No decorrer de seus estudos clínicos sobre o dispositivo da transferência, ele afirma: “Não temos o direito de contestar que o estado amoroso que faz seu aparecimento no decurso do tratamento analítico tenha o caráter de um amor genuíno”. Consideração similar faz Lacan no Seminário XX, quando insiste que só há um modo de operar no discurso analítico: a via singular do amor. Na introdução do programa do Seminário da Ética, ele situa três ideais postos para a experiência analítica, sendo o primeiro, o ideal do amor. Ele formula:
Por que a análise, que forneceu uma mudança de perspectiva tão importante sobre o amor, colocando-o no centro da experiência ética, que forneceu uma denotação original, certamente distinta do modo pelo qual o amor até então fora situado pelos moralistas e pelos filósofos na economia da relação inter-humana, por que a análise não foi mais longe no sentido da investigação daquilo que devemos chamar, propriamente falando, de uma erótica?”.
Enfrentar a estranheza do gozo com o recurso do amor de transferência para liberar a verdade do desejo do sujeito, essa é a proposta lacaniana para o fazer analítico.
E o sujeito, como se comporta no amor? Seria portador de um transtorno que excede o psiquismo na sua irracionalidade e passionalidade? No Seminário IX, Lacan(4) anuncia não existir um sujeito do amor como habitualmente falamos em sujeito do desejo, porque no amor trata-se é de uma ‘vítima’. Ele complementa no Seminário X( 5): “eu te identifico, a ti, a quem falo, a ti mesmo, ao objeto que a ti mesmo falta, isto é, por esse circuito onde sou obrigado a passar para alcançar o objeto do meu desejo, cumpro justamente por ele (tu) aquilo que ele procura”. Em outras palavras, o parceiro tem de cumprir a exigência de se vestir de objeto no apaixonamento.
Amor na literatura
Roland Barthes(6), em Fragmentos de um Discurso Amoroso, enuncia:
querer escrever o amor é enfrentar a desordem da linguagem; essa região tumultuada onde a linguagem é, ao mesmo tempo, demais e demasiadamente pouca, excessiva (pela expansão ilimitada do eu, pela submersão emotiva) e pobre (pelos códigos sobre os quais o amor a projeta e a nivela)”.
Tudo isso porque o amor corrompe regras, anuncia desatinos, somente obedece à fantasia. Enquanto o neurótico se debate com o recalque de suas fantasias, o escritor é livre para expressar o gozo e ainda deleitar o leitor mostrando suas exigências pulsionais.
Inês Pedrosa, escritora ficcionista na nova geração portuguesa, é quem melhor traduz o fenômeno “que é feito estar doente de uma folia” (Chico Buarque: “O que será”), quando afirma(7) não haver nada mais cruel do que um amor perfeito: “ataca, sobretudo em horas ou pessoas de plena distração, à revelia dessa confortável invenção humana a que chamamos razão”. O escritor, assim como o analista, está advertido: não existe amor sem ódio, pois a própria função do amor é feita dessa ambigüidade, já que sua essência é a demanda nunca cumprida.
Para investigar esse “polvo capitalista que foge das melhores intenções” como diz nossa escritora(8) sobre o amor, espécie de ‘catástrofe psicológica’ como exemplifica Lacan sobre a condição imaginária e narcísica do amor-paixão, será preciso rever a formulação freudiana de pulsão de morte e compreender que, em muitos casos, o amor não é suficiente para conter o gozo.
Bauman, sociólogo polonês cuja produção margeia a filosofia, escreve que a modernidade líquida em que vivemos gera a fragilidade dos laços humanos – denominados por ele de Amor Líquido (9). Os especialistas em auto-ajuda estão ávidos pela descoberta de novas fórmulas de convivência que, ao mesmo tempo, não impliquem compromisso! As relações virtuais ganham força por parecerem mais simples e descartáveis, por obra da tecla deletar. Bauman adverte sobre a intrincada e complexa conexão entre amor e morte: ambos são inesperados, imprevistos e atemorizam. Em sua definição, o amor “significa abrir-se ao destino, a mais sublime de todas as condições humanas, em que o medo se funde ao regozijo num amálgama irreversív el”.
Quando se ama ou simplesmente se escreve sobre o amor, podemos pensar que o mundo fica mais suportável, as diferenças são expostas, o intolerável e a segregação são revisitados e as mentiras podem se transformar em lindas ficções. Ovídio, em A arte de amar(10), transmite um ensino sobre a arte da sedução e coloca as mulheres (ou seja, também para ele, A mulher não existe) como o enigma do jogo do amor: “o coração das mulheres é muito variável; acharás mil gênios diferentes; emprega, pois mil modos diferentes para conquistá-las”.
O real posto à prova no amor.
A clínica nos tem revelado um estilo contemporâneo do amor e aponta para um excesso no laço amoroso. Por que dizemos que as mulheres estão cada vez mais loucas, se desde Ovídio existiam ‘mil gênios’ a serem decodificados?
Em A Instrução dos Amantes”, Pedrosa(11) responde:
As mulheres fogem dos homens equilibrados como se de uma doença permanente se tratasse... As mulheres gabam a felicidade alheia com o sorriso terrível dos deuses a quem todos os sacrifícios são devidos porque muito sofreram, e buscam em cada homem um pretexto da imolação que conduz à glória. É por isso que não lhes interessam os poucos homens lúcidos que ainda resistem; a perspectiva da pura partilha traz um cheiro da anestesia que lhes põe os nervos em pé, em alerta de loucura”.
Não se trata de um novo tipo de mulher, mas talvez o enfrentamento com a impossibilidade da relação sexual, em suas vestes de Tânatos. Nos tempos de hoje, compromisso não rima mais com amor. Segurança e afeto contínuo viraram sinônimos de dependência e é algo embaraçoso para a vida contemporânea, porque todo o discurso capitalista é de quebra do laço social, enaltecendo a imagem autística da autonomia em todos os sentidos.
E os filhos? Também se tornaram investimentos e precisam dar lucro, ter um futuro de sucesso no mundo capitalista.
Concluindo
Falar de amor já é, por si só, um gozo e o analista deve estar advertido de que a demanda de amor do analisante só deve ser sustentada na paixão de querer saber - a ignorância - sob o risco de o ódio eclipsar toda a travessia percorrida nos caminhos de cada destino pulsional. A análise revela o gozo condensado no objeto a e permite o endereçamento do uma carta de amor a qual vislumbra mais além da mensagem, o que escapa ao sentido. Quer dizer, quando um sujeito fala, diz mais do que pretende, porque fala com muito prazer de suas agruras e dissabores. Conhecemos pessoas que são indissociáveis de suas queixas. Escutar a verdade por detrás dessas queixas é o dever ético do analista.
Homem ou mulher são posições de habitar a linguagem. Atualmente, verificamos não ter qualquer relevância quem assume o papel cultural masculino ou feminino no vínculo amoroso. O laço conjugal está fundado no desejo de colocar no plano privado o sonho de fazer Um, de cuja impossibilidade já sabemos, embora todas as terapias de casal tentem soldar essa falha de estrutura.
Privilegiar a singularidade na conjugalidade é o único caminho possível para realizar o sonho de parceria, mesmo com interesses inconscientes, hábitos que restam da infância ou tédio da mesmice do dia-a-dia. Ir além é suprir com elegância a disparidade entre os amantes reavivando o amor cortês, que como nos ensina Lacan, elevando a “dama” à categoria de sujeita, não mais de vítima da relação.

* Trabalho apresentado no VII Encontro Nacional da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano. Belo Horizonte, outubro de 20

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