PRA QUE RIMAR AMOR E DOR
Capítulo VI
O laço conjugal: pra que
rimar amor e dor*
“Eu vou lhe dar a decisão
botei na balança e você não pesou
botei na peneira e você não passou
mora na filosofia
pra que rimar amor e dor
se seu corpo ficasse marcado
por lábios ou mão carinhosas
eu saberia, ora vai mulher...
a quantos você pertencia
não vou me preocupar em ver
teu caso não é de ver pra crer
tá na cara ”
botei na balança e você não pesou
botei na peneira e você não passou
mora na filosofia
pra que rimar amor e dor
se seu corpo ficasse marcado
por lábios ou mão carinhosas
eu saberia, ora vai mulher...
a quantos você pertencia
não vou me preocupar em ver
teu caso não é de ver pra crer
tá na cara ”
(Mora na filosofia de Monsueto e A. Pessoa)
O amor tem sido objeto de prosa e verso
na literatura e em inúmeros artigos psicanalíticos, renovando sua face
enigmática e louca. A palavra ‘amor’ é derivada do latim -“amore”-, que significa afeição, compaixão
ou satisfação. Falamos em Eros, quando o amor está personificado numa deidade:
Eros, o mais belo dos mortais, deus grego do amor e do desejo, era filho do
Caos - vazio original do universo. Tinha o poder de unir os elementos do caos
ao cosmo, um mundo organizado. Ganhou diferentes versões e Platão o descreveu
como filho de Poro (expediente) e Penia (pobreza), daí que a essência do amor
seja conhecida como essa permanente busca de satisfação. Eros introduz a
dialética do desejo: a concepção de infinitude e de movimento metonímico. Eros
está impregnado de Tânatos, cujo fascínio da morte ronda e delimita suas
fronteiras.
A literatura se constitui como uma
das maiores fontes de expressão do desejo humano, pois tem a possibilidade da
palavra verdadeira, isto é, com estrutura de ficção. O texto se transforma num
produto da trama dialética entre o sujeito e a pólis, torna-se um intricado de signos e
cada leitor vai apreciá-lo com os instrumentos de sua época. Se não, como
apreciaríamos tanto Shakespeare, Cervantes ou Ovídio?
O analista escreve sobre como suporta
a transferência, como aceita os limites do saber e como o saber pode vir a
ocupar o lugar da verdade no discurso analítico. Freud é considerado um dos
melhores escritores de sua época pelo estilo literário para além da transmissão
e formulação de conceitos teóricos. Assim como a literatura, a função do
escrito na psicanálise não é modelada por uma cientificidade ou tecnicismo, mas
tudo o que é escrito, define Lacan no Seminário XX¹, “parte do fato de que será para
sempre impossível escrever como tal a relação sexual. É daí que há um efeito de
discurso que se chama escrita”. Portanto, não é de hoje que poetas e escritores
tecem e remendam em seus escritos, as inquietações dos amantes e o sofrimento
das paixões.
Histórico:
A história do amor romântico, que
conhecemos na atualidade e veiculada pela literatura como eternamente
insatisfeito, se inicia no Reino dos Cátaros em Languedoc – langue=língua doc=documentada — no século XII. Até essa época, a tragédia predominava na civilização
cristã ocidental com o tema do amor impossível. Os cátaros, cultos e refinados
habitantes isolados nas rochas do sul da França, com o conhecimento da língua e
sendo severos críticos da Igreja Católica, que no século XI vivia na luxúria
desmedida, cultuavam o mundo espiritual numa Igreja do Amor a qual pregava a harmonia
entre os seres humanos. Rougemont, em História do Amor Ocidental², afirma terem surgido os trovadores
nessa atmosfera do catarismo para exprimir o amor cortês : o amor que rima com
dor. Além da produção de um novo estilo lingüístico, uma poética e ética
dedicada ao culto da dama, revolucionam a concepção do amor numa retórica do
romance, este originado no mito.
Lacan, em seu Seminário sobre A Ética³, leva em
consideração o amor cortês como a expressão do verdadeiro amor, pois no
exercício poético dos trovadores foi constituído um objeto (feminino)
inacessível. Se na tragédia tratava-se de um amor impossível, no qual o herói trágico era portador de um destino adverso, destrutivo
aos outros e a si mesmo, no amor cortês, a renúncia ao objeto
amado provoca a criação poética no bem dizer da sublimação.
O amor na psicanálise
Uma relação amorosa funda a
psicanálise quando Freud elabora um conceito novo a partir dos motivos da
interrupção do tratamento de Anna O. por Breuer. Conjugando amor e desejo,
Freud concebe a transferência como suporte de um enamoramento idealizado do
analisante pelo analista, em que uma neurose artificial se instala para
subtrair as manifestações sintomáticas e instrumentalizar o acesso ao gozo
recalcado. Nesse inédito laço amoroso, ele deduz, a partir de sua investigação
da fantasia das histéricas, um importante elemento sexual e o complexo de
castração, arcabouço de sua teoria.
Segundo Freud, as escolhas amorosas
se dão como revivência das relações de prazer com os objetos infantis,
experiências de satisfação que formam um molde para o investimento libidinal
futuro.
No decorrer de seus estudos clínicos
sobre o dispositivo da transferência, ele afirma: “Não temos o direito de
contestar que o estado amoroso que faz seu aparecimento no decurso do
tratamento analítico tenha o caráter de um amor genuíno”. Consideração similar faz Lacan no
Seminário XX, quando insiste que só há um modo de operar no discurso analítico:
a via singular do amor. Na introdução do programa do Seminário da Ética, ele
situa três ideais postos para a experiência analítica, sendo o primeiro, o
ideal do amor. Ele formula:
“Por que a análise, que forneceu uma mudança de perspectiva tão
importante sobre o amor, colocando-o no centro da experiência ética, que
forneceu uma denotação original, certamente distinta do modo pelo qual o amor
até então fora situado pelos moralistas e pelos filósofos na economia da
relação inter-humana, por que a análise não foi mais longe no sentido da
investigação daquilo que devemos chamar, propriamente falando, de uma
erótica?”.
Enfrentar a estranheza do gozo com o
recurso do amor de transferência para liberar a verdade do desejo do sujeito,
essa é a proposta lacaniana para o fazer analítico.
E o sujeito, como se comporta no
amor? Seria portador de um transtorno que excede o psiquismo na sua
irracionalidade e passionalidade? No Seminário IX, Lacan(4) anuncia não existir um sujeito do amor como habitualmente falamos em
sujeito do desejo, porque no amor trata-se é de uma ‘vítima’. Ele complementa no Seminário X( 5): “eu te identifico, a ti, a quem falo, a ti mesmo, ao objeto que a ti
mesmo falta, isto é, por esse circuito onde sou obrigado a passar para alcançar
o objeto do meu desejo, cumpro justamente por ele (tu) aquilo que ele procura”.
Em outras palavras, o parceiro tem de cumprir a exigência de se vestir de
objeto no apaixonamento.
Amor na literatura
Roland Barthes(6), em Fragmentos de um Discurso Amoroso, enuncia:
“querer escrever o amor é enfrentar a desordem da linguagem; essa região tumultuada
onde a linguagem é, ao mesmo tempo, demais e demasiadamente pouca, excessiva (pela expansão ilimitada do
eu, pela submersão
emotiva) e pobre (pelos códigos sobre os quais o amor a projeta e a nivela)”.
Tudo isso porque o amor corrompe
regras, anuncia desatinos, somente obedece à fantasia. Enquanto o neurótico se
debate com o recalque de suas fantasias, o escritor é livre para expressar o
gozo e ainda deleitar o leitor mostrando suas exigências pulsionais.
Inês Pedrosa, escritora ficcionista
na nova geração portuguesa, é quem melhor traduz o fenômeno “que é feito estar
doente de uma folia” (Chico Buarque: “O que será”), quando afirma(7) não haver nada mais cruel do que um amor perfeito: “ataca, sobretudo
em horas ou pessoas de plena distração, à revelia dessa confortável invenção
humana a que chamamos razão”. O escritor, assim como o analista, está advertido:
não existe amor sem ódio, pois a própria função do amor é feita dessa
ambigüidade, já que sua essência é a demanda nunca cumprida.
Para investigar esse “polvo
capitalista que foge das melhores intenções” como diz nossa escritora(8) sobre o amor, espécie de ‘catástrofe psicológica’ como exemplifica
Lacan sobre a condição imaginária e narcísica do amor-paixão, será preciso
rever a formulação freudiana de pulsão de morte e compreender que, em muitos
casos, o amor não é suficiente para conter o gozo.
Bauman, sociólogo polonês cuja
produção margeia a filosofia, escreve que a modernidade líquida em que vivemos
gera a fragilidade dos laços humanos – denominados por ele de Amor Líquido (9). Os especialistas em auto-ajuda estão ávidos pela descoberta de novas
fórmulas de convivência que, ao mesmo tempo, não impliquem compromisso! As
relações virtuais ganham força por parecerem mais simples e descartáveis, por
obra da tecla deletar. Bauman adverte sobre a intrincada e complexa conexão
entre amor e morte: ambos são inesperados, imprevistos e atemorizam. Em sua
definição, o amor “significa abrir-se ao destino, a mais sublime de todas as
condições humanas, em que o medo se funde ao regozijo num amálgama irreversív
el”.
Quando se ama ou simplesmente se
escreve sobre o amor, podemos pensar que o mundo fica mais suportável, as
diferenças são expostas, o intolerável e a segregação são revisitados e as
mentiras podem se transformar em lindas ficções. Ovídio, em A arte de amar(10), transmite um ensino sobre a arte da sedução e
coloca as mulheres (ou seja, também para ele, A mulher não existe) como o enigma do jogo do amor: “o
coração das mulheres é muito variável; acharás mil gênios diferentes; emprega,
pois mil modos diferentes para conquistá-las”.
O real posto à prova no amor.
A clínica nos tem revelado um estilo
contemporâneo do amor e aponta para um excesso no laço amoroso. Por que dizemos
que as mulheres estão cada vez mais loucas, se desde Ovídio existiam ‘mil
gênios’ a serem decodificados?
Em “A Instrução dos Amantes”, Pedrosa(11) responde:
“As mulheres fogem dos homens equilibrados como se de uma doença
permanente se tratasse... As mulheres gabam a felicidade alheia com o sorriso
terrível dos deuses a quem todos os sacrifícios são devidos porque muito
sofreram, e buscam em cada homem um pretexto da imolação que conduz à glória. É
por isso que não lhes interessam os poucos homens lúcidos que ainda resistem; a
perspectiva da pura partilha traz um cheiro da anestesia que lhes põe os nervos
em pé, em alerta de loucura”.
Não se trata de um novo tipo de
mulher, mas talvez o enfrentamento com a impossibilidade da relação sexual, em
suas vestes de Tânatos. Nos tempos de hoje, compromisso não rima mais com amor.
Segurança e afeto contínuo viraram sinônimos de dependência e é algo embaraçoso
para a vida contemporânea, porque todo o discurso capitalista é de quebra do
laço social, enaltecendo a imagem autística da autonomia em todos os sentidos.
E os filhos? Também se tornaram
investimentos e precisam dar lucro, ter um futuro de sucesso no mundo
capitalista.
Concluindo
Falar de amor já é, por si só, um
gozo e o analista deve estar advertido de que a demanda de amor do analisante
só deve ser sustentada na paixão de querer saber - a ignorância - sob o risco
de o ódio eclipsar toda a travessia percorrida nos caminhos de cada destino
pulsional. A análise revela o gozo condensado no objeto a e permite o endereçamento do uma
carta de amor a qual vislumbra mais além da mensagem, o que escapa ao sentido.
Quer dizer, quando um sujeito fala, diz mais do que pretende, porque fala com
muito prazer de suas agruras e dissabores. Conhecemos pessoas que são
indissociáveis de suas queixas. Escutar a verdade por detrás dessas queixas é o
dever ético do analista.
Homem ou mulher são posições de
habitar a linguagem. Atualmente, verificamos não ter qualquer relevância quem
assume o papel cultural masculino ou feminino no vínculo amoroso. O laço conjugal
está fundado no desejo de colocar no plano privado o sonho de fazer Um, de cuja
impossibilidade já sabemos, embora todas as terapias de casal tentem soldar
essa falha de estrutura.
Privilegiar a singularidade na
conjugalidade é o único caminho possível para realizar o sonho de parceria,
mesmo com interesses inconscientes, hábitos que restam da infância ou tédio da
mesmice do dia-a-dia. Ir além é suprir com elegância a disparidade entre os
amantes reavivando o amor cortês, que como nos ensina Lacan, elevando a “dama”
à categoria de sujeita, não mais de vítima da relação.
* Trabalho apresentado no VII Encontro Nacional da Escola de Psicanálise
dos Fóruns do Campo Lacaniano. Belo Horizonte, outubro de 20
Leitura intrigante, um bom convite para filosofar!
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