sábado, 24 de novembro de 2012


 “O mal é bom e o bem cruel”

Identidade e sujeito diante do capitalismo tardio


O bem e o mal
 A maneira mais simples para introduzir o tema do bem e mal na sociedade contemporânea seria retomar a descoberta de Freud da pulsão de morte, essa pulsão agressiva que abrigamos dentro de nós. Essa pulsão que coloca obstáculos ao vínculo social promovido pela cultura, visto que o laço social se funda a partir de outra pulsão que é conduzida pelo amor: o EROS.
Portanto, a explicação para as atitudes humanas seria muito simples: o EROS une, enquanto TANATUS separa.
 Porém, Freud percebe que as coisas são muito mais complicadas na civilização devido aos conflitos entre as necessidades do sujeito e as do grupo social.
Resultado: não é tão simples distinguir o BEL e o MAL, porque depende do ponto de vista que vamos tomar. Por exemplo, se tomamos o ponto de vista do sujeito: satisfazer suas tendências agressivas não seria forçosamente um mal, pelo contrário, pode ser até um bem, dependendo da situação ao qual esteja implicado.
Então, onde está o bem e onde está o mal?
        Na pena de Caetano, “O mal é bom e o bem cruel” (Tigresa).

Ou em Bem ou Mal – NX zero:

E pouco tempo pode ser demais pra quem sabe o que quer
Pra quem respeita a vida e a si mesmo
O tempo muda sempre cada vez mais
E dentro de você existe o bem e o mal
e a escolha certa

Poderíamos dizer na psicanálise que o mal é a emanação da pulsão de morte que empuxa o EU a se estropiar. Desse modo, o verdadeiro mal seria o mal dirigido a si próprio e não aos demais. Seria uma filosofia sadiana, contrária a da caridade cristã, na qual o mal é unicamente aquele dirigido ao próximo.
Deduzimos que é a influência alheia (do Outro) que permite ao sujeito distinguir o bem do mal: o medo de perder o amor do outro, de quem se depende no desamparo.
 O humano nasce desprotegido dos perigos e precisa dos cuidados do outro para sobreviver e esse Outro, vigilante, mas que pode ser caprichoso (vejam o exemplo do monstro austríaco Josef Fritzl, pai incestuoso que durante 24 anos abusou sordidamente da filha e dos netos).
Portanto, o mal na definição freudiana seria, a princípio, aquilo pelo qual alguém é ameaçado da perda de amor. Numa criança pequena não existe outro tipo de situação. Por isso uma criança pode fazer o mal a si e aos outros, diante da angústia da perda do amor e proteção (o filme Slumdog milllionaire mostra muito bem isso, assim como nossas crianças da rua).
No entanto, mesmo com a internalização da lei e da consciência moral, ainda restam pedaços dessa pulsão agressiva  – traduzimos em Freud como a ferocidade do supereu contra o eu, como podemos verificar tão detalhadamente nos casos de melancolia e psicose.
O paradoxo é que: quanto mais o EU se submete ao mandamento do SUPEREU, mais feroz se faz o SUPEREU. O supereu nunca fica saciado, é guloso e caprichoso! Ou seja, quanto mais repressora é uma educação ou cultura, mais provoca o “lobo” que existe dentro do homem a se manifestar.

O sujeito e os efeitos do capitalismo tardio
No filme  A QUESTÃO HUMANA, temos um exemplo de um psicólogo que atende às novas demandas do capitalismo tardio e das dinâmicas empresariais: controla o lado humano dos empregados, regulando-os de acordo com os imperativos da corporação – seja promovendo motivações e auto-estima, seja selecionando quem deve ser contratado ou demitido.
A Questão Humana faz um paralelo entre o processo de exclusão e segregação dos empresários capitalistas e do nazismo, onde a função do psicólogo era a de um funcionário exemplar cumprindo ordens, tal qual Eichmann: tudo era feito com técnica, zelo e eficiência, sem o sentimento de bem ou mal.
Qual o papel do psicólogo diante das exigências do mercado capitalista com o trabalhador? É preciso distinguir as fronteiras do impossível que é cobrado ao humano para denunciar a gulodice do supereu!
Atravessamos vários impasses na cultura atual, que exige que tudo seja visto, dito, contabilizado, principalmente graças aos avanços científicos que tem êxito em circunscrever cada vez mais o real (biológico do corpo humano). Ou seja, diante da realidade atual em que temos aparatos para as comunicações, para filmar, fotografar, recursos para desvendar o DNA, poderíamos ter a sensação de que estaríamos mais seguros, não?
No entanto, o efeito é inverso: os aparelhos que serviriam para nos garantir e proteger, também são utilizados para o gozo e para desencadear o pior do humano. Vide a moda de filmar e compartilhar na net espancamentos, abusos sexuais, porcarias que escapam a qualquer controle e legislação.
Alguns cientistas sociais dizem que voltamos à idade média, outros que ressuscitamos o horror nazista e seu sonho de depurar a raça chegando a um biótipo ideal por meio do extermínio e se apoderando dos corpos para os experimentos científicos. Tratava-se de submeter o real humano à pureza do significante simbólico: sacrifício total! É só observar o efeito produzido pela gestão científica da realidade humana, uma orientação biopolítica que manda tudo ser sacrificado em prol de um estilo: cirurgias plásticas, anorexia, body-art...
Uma concepção de corpo que corresponda ao ideal uniformizante de nossa época – início do séc XXI - será lembrada no futuro como o momento onde o culto ao corpo se tornou obsessão, anorexia um estilo de vida; ao tempo em que a insatisfação e a depressão alcançam índices alarmantes denunciando a contradição entre o que é demandado e o que verdadeiramente satisfaz.
A imitação das celebridades tornou-se um valor a ser alcançado, principalmente no nosso país, onde temos os melhores cirurgiões plásticos do mundo!
Ideais e sujeito do desejo. 
O conceito do estádio do espelho foi desenvolvido por Lacan a partir da experiência de Henry Wallon que, em 1931, descreveu como a criança vai aos poucos diferenciando seu corpo da imagem que observa no espelho. Segundo Wallon, isto se daria em face de uma compreensão simbólica, por parte do sujeito, do espaço imaginário em que constitui sua unidade corporal.
Em 1936, em uma Conferência na Sociedade Psicanalítica de Paris, Lacan utiliza o experimento de Wallon e sua terminologia, para desenvolver seu conceito do Estádio do Espelho como formador da função do EU, onde vai abordar esse momento estrutural do ser humano, que ocorreria entre os seis e os dezoito meses de vida, quando ele se reconhece na imagem de um outro no “espelho”. A identificação com essa imagem vai lhe proporcionar uma ilusão gestaltica de completude, antagônica à vivência de despedaçamento. No estágio de formação do eu, a realidade, que se apresenta para o sujeito, é caótica e indefinível e precisa do simbólico para nomeação dos objetos, fornecer estrutura a esta percepção da realidade. Aqui todo o peso da função materna como alteridade, pois o modo como o sujeito vai se posicionar estruturalmente em relação à realidade vai depender da atenção às suas necessidades e a mediação do simbólico, representado no Outro que lhe fornece o código de linguagem. Tudo isso pode ser identificado nas lembranças do corpo fragmentado em nossa clínica do dia-a-dia:
·        Nos sonhos em forma de membros desunidos, retratados nos quadros de Bosch – quando a análise toca certo nível de desintegração agressiva;
·        Na histeria, sob a forma de espasmos;
·        Na esquizofrenia, nos sintomas de desmembramento corporal;
·        Na neurose obsessiva, nos mecanismos de isolamento, inversão a partir da fortificação do plano mental brotada dos sintomas.
Conclusão
Como vimos, a alienação originária e constitutiva do sujeito o leva a oferecer-se como instrumento de um Outro, na esperança de escapar dos sofrimentos e por medo de perder o amor e proteção. Essa é a disposição estrutural do ser humano e pensamos que, apesar da sociedade se estruturar de modo que seus membros se identificam a certos modelos, ideais a serem atingidos, urge uma reflexão: como acomodar diferenças e singularidades diante da exigência do capitalismo que reforça o fetichismo dos objetos de consumo?
Aracaju, 28 de abril de 2009 X semana de psicologia da UNIT: O bem e o mal na sociedade contemporânea

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