sábado, 4 de dezembro de 2021

CORPOS EM SACRIFÍCIO

 

XX ENCONTRO DA EPFCL     Aracaju, outubro, 2019

CORPOS EM SACRIFÍCIO

Alba Abreu Lima

“aquilo que herdaste de teus pais, conquista-o para possuí-lo” Goethe

A linguagem, fundadora da civilização humana, surge para cada sujeito a partir de sua causa traumática onde será marcada para ele, doravante de maneira infalível, a fronteira de seu gozo. O corpo diz respeito à resposta do sujeito ao desejo: “que objeto sou no desejo do Outro?” O Outro emprenha o sujeito de seus significantes que se imiscuem no corpo, ainda que seja para produzir o silêncio dos órgãos. A linguagem embrenha-se no corpo e leva o sujeito a esquecer de seu corpo, apenas relembrado no recorte de certas zonas que adquirem um estatuto particular: zonas erógenas.

Lacan aborda inicialmente o corpo como uma imagem criadora da identidade, pois a prematuração biológica do ser humano poderia ser compensada no apoio da imagem do corpo do outro. Ou seja, quando Lacan disse que o falasser adora seu corpo e crê que o tem, é porque quando o corpo estava despedaçado o imaginário agenciou uma resolução a essa fragmentação que é própria do animal homem dando-lhe consistência. Mas é pela palavra – ‘presença feita de ausência’ – capturada por Freud na brincadeira do Fort/Da que é regulada a função simbólica e a trama da lei atrelada ao desejo. O nome-do-pai é o suporte dessa relação simbólica e possibilita na dissolução do complexo de castração em cada sujeito, não sem ‘danos acidentais’, a dramaturgia do seu destino.

Freud em um de seus textos mais importantes sobre a fantasia, Bate-se numa criança, situa a criança na fase em que está enredada em seu complexo parental, e diz sobre o amor edípico:

...’chega o tempo em que essa florada prematura é prejudicada pela geada; nenhum desses enamoramentos incestuosos pode escapar da fatalidade do recalcamento. Ou sucumbem a ele pela comprovação de eventos externos... ou a partir de dentro, talvez apenas devido à não realização tão longamente almejada.”

A fantasia é inconsciente e brota do complexo de Édipo. Com a dissolução desse complexo, a fantasia conservar-se como resíduo, indicando a posição do sujeito em relação ao gozo. A passagem pelo Édipo produz um efeito de condensar as fantasias numa única fantasia, que Lacan pontua como a particularidade que ordena o modo do sujeito estar no mundo.

 Lacan aborda o Édipo freudiano com a metáfora paterna em 1958, em De uma questão preliminar, articulando o NP como a intervenção que insere o sujeito na cultura, no mundo simbólico, pois se trata da inscrição no lugar do Outro do significante. Desse modo o NP torna-se civilizatório e uma garantia do sujeito percorrer a autoestrada sem se perder nas vicinais. O seminário das Formações do Inconsciente é dedicado à metáfora paterna e somente mais tarde, no Seminário ‘de um Outro ao outro’ ele assegura que a função do NP pode ser sustentada por outras pessoas que não o pai de família. O pai perde a característica de herói, de ideal, e sua virtude consiste justamente em não se identificar com a função, mas conseguindo sustentá-la.

  Freud adverte, em Perda da realidade na neurose e na psicose, de 1924 que a neurose é resultado de um recalcamento fracassado, o que quer dizer que o recalque e a metáfora paterna são sempre falíveis. Ao que Lacan, no Seminário O Avesso da psicanálise acrescenta o lugar do pai não mais apenas em sua dimensão significante, mas como alguém encarcerado em sua causa sexual, colocando o real em jogo e a falha mesmo da operação significante. Para tal, retoma o sonho de Dora, no qual ela substitui o pai morto por um livro, o dicionário, onde se ensina sobre o sexo: ‘assim, marca com nitidez que o que lhe importa, para além da morte de seu pai, é o que ele produz de saber. Não qualquer saber – um saber sobre a verdade”. 

Em 21 de janeiro de 1975: um pai só tem direito ao respeito, pra não dizer ao amor, se o dito amor, o dito respeito está pèreversamente orientado, isto é, faz de uma mulher o objeto a que causa o seu desejo. Se nos anos ’50 o universal da função paterna dizia respeito ao pai simbólico, o pai morto, na versão paterna (père-version) Lacan resguarda o singular, ou seja, como o sujeito se arranja com o modelo de gozo do pai. A palavra versão etimologicamente significa vertere: virar no sentido de manobra obstetrícia (VCE) ou de curso de um astro em sua órbita, revolução, mas também de traduzir de uma língua a outra.

  Em 1976, no seminário O sinthoma, continua elucidando a pai-versão enlaçando com a transmissão da castração:

“ a imaginação de ser o redentor, pelo menos na nossa tradição, é o protótipo da pai-versão. Na medida em que há relação de filho com pai, surge essa ideia tresloucada de redentor, e isso há muito tempo. O sadismo é para o pai, o masoquismo é para o filho...a castração é que o falo é transmitido de pai para filho, e isso inclusive comporta alguma coisa que anula o falo do pai antes que o filho tenha direito de portá-lo...a castração é uma transmissão manifestadamente simbólica”

O caso do cervo sagrado – o filme

Desde sempre, a literatura, a mitologia, as artes em geral nos auxiliam na apreensão da clínica psicanalítica e na possibilidade de sua transmissão. A versão contemporânea de Ifigénia em Áulide criada pelo diretor Yorgos Lanthimos, no filme O Sacrifício do Cervo Sagrado, encontra no elemento fantástico uma maneira de arrazoar o pai, a família e as construções sociais contemporâneas com suas manifestações de violência ou estagnação, prestes a explodir no fora-de-sentido.

A peça de Eurípedes na qual o filme se baseia se passa antes da Guerra de Tróia, quando o exército dos aqueus é impedido de avançar no mar pela falta de ventos. O comandante das forças gregas, Agamemnon, consulta um oráculo: Calchas, que profetiza que tudo correrá bem se Ifigênia, a filha mais velha e virgem de Agamemnon, for sacrificada à deusa Artemis. Para convencê-la, mente que seria para casar com Aquiles, o guerreiro. Aquiles não sabe absolutamente nada sobre o assunto, mas um mensageiro ouve a conversa e conta dos planos de Agamemnon para Aquiles e para Clytemnestra. Clytemnestra, revoltada, implora para que Aquiles a ajude a salvar Ifigênia do sacrifício. O guerreiro concorda. Mas Agamemnon sabe que o sacrifício é inevitável: diz que Ifigênia morrerá pela Grécia, uma causa que é maior do que todos eles. Ifigênia, como uma heroína da tragédia escolhe ir para o sacrifício por respeito a seu pai e pede que sua mãe não ponha luto e nem chore por ela. Segue para a morte no templo de Artemis. No momento do sacrifício Ifigênia é transformada num cervo, salvando-se do destino pela deusa. Os navios são colocados em marcha e Tróia é invadida pelo glorioso exército grego.

 O filme de Yorgos Lanthimos desde o primeiro frame, um close-up de um coração batendo, mostra a vida sendo salva pelas “belas mãos” do cirurgião, Steven, protagonista, cuja vida obedece a regras rígidas e de uma tediosa apatia. Sua mulher se oferece na relação sexual como anestesiada, quase desfalecida, encenando a fantasia do marido; seus filhos obedecem ao ritual monótono de afazeres domésticos, quase estáticos em suas atitudes. Nesse mal estar, entra em cena Martin, filho de um paciente que veio a óbito na mesa de cirurgia e que Steven passa a acolher em meio às relações familiares. Motivado pela culpa, a partir de então Steven parou de beber por supostamente ter bebido no dia anterior da cirurgia. Os dois começam a se encontrar com regularidade, mas as conversas soam fora de sentido. Quando Steven convida Martin para jantar com sua família explode todo clímax do filme. Martin fica muito pegajoso e ao perceber que a relação saiu do controle, Steven evita o adolescente, gerando sua ira que vai desembocar numa maldição sobre a família que, segundo Martin, consiste em etapas de sacrifício dos corpos: 1) Primeiro ficarão paralíticos; 2) Depois, se recusarão a comer; 3) Os olhos começarão a sangrar 4)Por fim, a morte.

Como na peça de Ifigênia, o pai deve escolher um dos filhos ou a mulher para matar, caso contrário todos morrerão. A maldição começa a se manifestar no caçula que acorda sem conseguir mexer as pernas. A paralisia avança, e nenhuma explicação médica é encontrada, apesar da mulher pedir para que ele seja examinado em sua subjetividade por acreditar ser um distúrbio psicológico. Mas nenhum psi é consultado demonstrando bem o poder das máquinas e da ciência moderna, que foraclui o sujeito. O hospital é completo em termos de aparelhagem e os médicos consultados são os mais renomados dos Estados Unidos. Daí é a vez da filha perder os movimentos e ficam internados no hospital, sem que qualquer exame detecte causas fisiológicas para os sintomas do corpo, param de comer e respiram com dificuldade. A confirmação do ‘poder’ de Martin vem quando a menina volta a andar momentaneamente enquanto conversa com ele por telefone. É o momento em que a mãe vê que realmente não se trata de uma doença orgânica, mas mesmo assim não consegue convencer o marido a pensar numa causa subjetiva. Nada mais condizente com o que Lacan diz que a ciência foraclui a verdade do sujeito e visa um saber no real sem considerar as causas subjetivas que são próprias a cada um.

Bob, filho mais novo, em um momento de desespero paterno diante da progressão dos sintomas, é depositário da confissão do gozo do pai: quando tinha a idade do filho, Steven descreve uma cena em que masturba seu pai na cama quando este está bêbado e sai quando ele ejacula abundantemente. Estabelece com o filho uma relação de excesso de gozo, sem a lei do desejo, onde o filho poderia não sabendo dessa revelação paterna, construir uma barreira. Bob, então se coloca ai como o “cervo sagrado”, puro e sem segredos tal qual a virgem Ifigênia, morre para salvar a família da desgraça.

Concluindo

O impossível em termos freudianos é a castração, na qual o pai estaria submetido à lei do desejo, Steve não sustenta, pois não encontra a causa de seu desejo fora dele nesta mulher em que ele repete a cena de gozo com o pai: ela tem de se fingir anestesiada na relação sexual e o sintoma dos filhos atualiza essa anestesia.

Única garantia da pèreversion paterna (que, em momento algum, derruba a função do pai) é a posição de um homem que faça de uma mulher a causa de seu desejo, sem procurar estabelecer com os filhos uma relação de gozo. Dai decorre a maneira pela qual o dizer do pai pode enlaçar os registros RSI, que é a maneira de dar nome às coisas da vida, pela qual o Nome-do-Pai verte-se em pai do nome. A relação entre as três dimensões nas quais o falasser se estrutura, e com o que o sujeito tem de se virar, para além da função paterna de amarração, para instituir, um enodamento que mantenha o borromeano da cadeia.

 

A psicanálise não se propõe a curar as mais variadas formas de violência e o modo em que os corpos são tratados como suporte de sacrifício ou dejetos, mesmo se existe um caráter dito humanitário para tal, mas na experiência analítica o sujeito tem a possibilidade de modificar sua relação com o gozo. a análise permitiria um modo de desvelar a natureza do artifício e permitir algo novo nessa amarração sinthomática.

Referencias bibliográficas:

FREUD Obras incompletas: neurose, psicose, perversão. Ed Autentica.

LACAN, J. (1955-56). O Seminário, livro 3: as psicoses. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1988

                 (1957-58). O Seminário, livro 5: as formações do inconsciente. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1999.

                 (1960) “Subversão do sujeito e dialética do desejo”. In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998.

                (dez 1957/jan 1958) “De uma questão preliminar a todo tratamento possivel da psicose”. In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998.

              (1969-70) O seminário, livro 17: O avesso da psicanálise. Rj: Jorge Zahar, 1991.

               (1972-73). O Seminário, livro 20: mais, ainda. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed, 1982.

               (1974-75). O Seminário, livro 22: RSI.

               (1975-76). O seminário, livro 23: O sinthoma. RJ: Jorge Zahar, 2007.

Vargas, T.C & Polo, V. (2017). “Ifigênia em Áulis”: a guerra, as núpcias e a morte (Contribuições psicanalíticas para uma leitura da tragédia). Trivium: Estudos Interdisciplinares (Ano IX, Ed.2), p. 232-245.

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