PANDEMIA E PSICANALISE 30/5/2020
A imperfeição necessária do analista
ALBA ABREU LIMA
“o ser humano sabe fazer dos obstáculos novos caminhos, porque à vida basta o espaço de uma fresta para renascer” Sábato
Estamos diante de um evento que marca uma descontinuidade e que nos causa estupor e pânico. Colete Soler, em Adventos do real: da angústia ao sintoma,aborda a questão da angustia nas diferentes conjunturas onde ela pode aparecer. Coloca uma dissimetria entre dois termos que podemos tomar para analisar o momento que vivemos:
De repente fomos todos tomados pelo pânico de um vírus mortal, que se espalha muito rapidamente pelos continentes sem que tenhamos recursos discursivos paraapreende-lo. Todas as nossas acomodações de lugar, tempo, hábitos e pontos de referências pessoais foram suspensas e o horror do imprevisto assolou e nos distanciou das coordenadas simbólicas e cada um respondeu de sua maneira particular ao acontecimento mundial.
Experimentamos todos, de um dia para outro, acordar para algo que não conhecíamos, forçados a viver no isolamento dos corpos, afetados pelo desamparo não somente do vírus, mas fazendo emergir as desigualdades econômicas e sociais como uma avalanche, principalmente no Brasil.
O medo do real da natureza que já vinha se exibindoem nossa época, seja pela falta de cuidado com o planeta, ou no aparecimento de novas doenças, impondocatástrofes vividas ou anunciadas. O falante, diz Lacan, costuma dar às doença ou os acidentes da vida um sentido, seja aquele da punição ou da perseguição por um Outro obscuro. Dessa vez um Outro invisível e abstrato surgiu no horizonte para nos lembrar da nossa condição de mortais.
Freud advertia, em O futuro de uma ilusão que é porque, no inconsciente, o destino, o acaso e, especificamente, a má sorte representam a instância parental, a necessidade de uma crença estaria ligada à busca do homem de se relacionar com o pai, sendo assim, um sentimento de proteção ao desamparo infantil. Ao que Lacan chama de Outro. Por isso, o que surge ao sujeito como má-sorte não concebe somente a culpa, provocatambém acusações paranóides e por vezes posturas de vítima. Em todos os casos o Outro é sempre convocado a dar sentido ao indecidivel.
Sabemos, com a psicanálise que a angústia que não é sem Outro, ela responde ao desconhecido que é o desejo e o gozo do Outro na medida em que o sujeito se coloca como objeto. Lacan explica em A terceira que o real é o que nos desacomoda de nosso cotidiano e que nos adverte de nossa finitude, mas o analista está ai concernido:
“O instigante de tudo isso é que seja do real de que depende o analista nos anos que virão e não o contrário. Não é de forma alguma do analista que depende o advento do real. O analista tem por missão detê-lo. Apesar de tudo, o real poderia muito bem desembestar, sobretudo desde que tenha o apoio do discurso cientifico”
Estamos diante do insensato, incalculável e a morte, que já estava quase esquecida nos últimos tempos (com negação da morte, do culto ao individualismo e da recusa ao envelhecimento) agora retorna dessa maneira trágica.Na condição de psicanalistas precisamos articular e tentar cernir esse impossível com nosso desejo.
Acreditamos com Freud, a partir de "Inibição sintoma e angústia" que as situações de perigo são sempre aquelas face ao que o indivíduo está ou esteve sem recursos. O recurso mais primário, fuga quando se trata de um perigo exterior. O perigo interno, de uma excitação pulsional ou de desejos que não encontram maneira de fugir, não podem se satisfazer sem provocar retaliações inevitáveis na realidade as quais não se poderá evitar. Lacan traduz com a banda de moebius esse dentro/fora para falar desse traumático do sujeito.
A perspectiva da psicanálise é de que o sujeito exerça sua singularidade, reconheça a alteridade na qual se constituiu, porém sem o curto-circuito da dor de existir, mas oferecendo condições para que possa se questionar a angustia e passar ao registro do desejo. Do insensato a uma amarração moebiana, com palavras e ressonando a fantasia, que é o que o sujeito tem de mais singular.
Lacan apregoa que o sujeito é sempre responsável, mesmo que dependa do modo de relação com o Outro, ainda assim ele elege sua posição de resposta. O sujeito nessa pandemia se vê impossibilitado na resposta ao sofrimento e a política do analista é de sustentar a presença. A função de poder fazer semblante de objeto a, foi se acomodando ao online na voz e em alguns casos também no olhar atravessado pela tela do computador, para:
Enfim, trabalhar para que possamos ressoar com a interpretação atravessando o dispositivo online, algo do gozo de cada um e como cada analisante pode ser amparado em sua angustia.
Em Subversão do sujeito, Lacan fala da imperfeição necessária do analista e sua ignorância renovada a cada caso como uma questão para o desejo do analista. Por isso, a psicanálise é uma experiência subversiva que conduz o analisante a interrogar o saber universal para conquistar um saber particular.
Referências bibliográficas:
LACAN, J. (1960). O triunfo da religião: precedido de Discurso aos católicos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2005.
1974 Conferencia A terceira. Cadernos Lacan. Porto Alegre: APPOA, 2002. Vol 2
Os Escritos RJ: Jorge Zahar, 1998
Freud, S. (1976). Inibições, sintomas e ansiedade. In S. Freud, Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (Vol. 20). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1926)
Freud, S. (1996). O futuro de uma ilusão. Edição standard das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (Vol. XXI, pp. 15-64). Rio de Janeiro: Imago. (Texto original publicado em 1921)
Freud, S. (1996). Psicologia de grupo e análise do ego. Edição standard das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (Vol. XVIII, pp. 77-146). Rio de Janeiro: Imago.
Sabato, Ernesto A resistência. SP: Companhia das Letras, 2008
Soler, Colette. Adventos do real: da angústia ao sintoma. SP: Editora Aller, 2018
por Colette Soler (Autor), Elizabeth Saporiti (Tradutor)
Nenhum comentário:
Postar um comentário