quinta-feira, 29 de novembro de 2012

as muralhas do impossivel

“ENTRE DUAS MURALHAS DO IMPOSSÍVEL” Alba Abreu Lima “A vida de todo ser humano oscila entre a ilusão do ideal e o peso do fático, essa chatice que chamamos realidade” (Ernesto Sabato) “Tal como para a humanidade em geral, também para o indivíduo a vida é difícil de suportar” (Freud, em Futuro de uma ilusão) O conceito de trauma na psicanálise remete a eventos insólitos que são provocados por agentes do exterior psíquico e aos quais o sujeito é pego de surpresa e não tem a chance de ab-reagir. Todavia, cada sujeito é afetado de modo diferente ao traumatismo psíquico, mesmo no caso de catástrofes ambientais ou provocadas pela violência do humano que ameaçam a integridade do vivente e gera para todos, um sentimento de impotência. Esse sentimento está relacionado com lembranças da sexualidade infantil e que são incompatíveis com a moral social, diz Freud. O choque traumático do psiquismo é sempre experimentado como uma erupção do real e leva a marca do desamparo psíquico pois atravessa o ‘escudo protetor’ do aparelho psíquico. Freud em “Mais Além do Princípio de Prazer” (1920) insiste sobre o aspecto econômico do traumatismo, argumentando sobre a relação de forças entre a quantidade de excitações provindas do exterior e a energia disponível no aparelho psíquico para elaborar, simbolizar ou assimilar o corpo estranho. Resumindo, seria uma luta entre as forças energéticas do aparelho psíquico e as do exterior, e que ainda estariam submetidas às versões singulares dos fatores constitucionais e vivências infantis. Em Inibição, sintoma e angústia, Freud distingue medo, angústia e susto, considerando o valor defensivo da angústia como algo que protege o sujeito do susto. O Eu, ao desencadear o sinal de angústia, procura evitar o perigo. O sinal de angústia seria a ‘expectativa angustiante do trauma’ e ao mesmo tempo em que serve para avisar do perigo, mantém a relação com o desejo. A angústia surgiria a princípio no desamparo psíquico, quando o Eu ainda está imaturo, depois diante do perigo da perda do objeto e mais tarde, no medo da castração que, completa Lacan, “é como um fio, perfura todas as etapas do desenvolvimento”. Com a descoberta das “misteriosas tendências masoquistas do Eu” e tomando como modelo a neurose traumática, Freud acredita que o recalque primário onde estariam guardados os traços mnêmicos do traumatismo precoce seria reconhecido pelo sujeito retroativamente, pela demoníaca compulsão à repetição. No Esboço de Psicanálise ele admite que o aparelho psíquico tem por tarefa fazer as ligações (Bindung) da libido com as representações, estabelecendo assim uma rede de significações. Se o aparelho psíquico não consegue executar sua tarefa a contento, surge o sinal de angústia frente ao perigo pulsional que o sujeito vivencia como onipotência do Outro. Lacan acentua o caráter de encontro faltoso com o real, falta de representação, que só se tem acesso através do sonho ou da fantasia. No encontro traumático ocorre um curto-circuito significante e o sujeito busca, desesperadamente, vestir essa falta-de-sentido para tentar assimilar simbolicamente a experiência. A passagem do trauma à fantasia, da falta de representação ao objeto como causa de desejo é demonstrada por Freud em ‘Bate-se numa criança’. É o complexo de castração inconsciente que modaliza para o sujeito as realizações possíveis do seu desejo através da fantasia, esse pequeno cenário perverso onde uma ação, ou mesmo uma frase, liga o sujeito à sua posição de objeto do Outro. No lugar de Das Ding, o sujeito realiza imaginariamente o gozo na fantasia, numa ambivalência entre fascinação e horror. Fascinação diante da denegação da castração materna e horror pela iminência da perda, da castração. O sujeito brinca de objeto causa de desejo para velar a castração do Outro e ao mesmo tempo tenta não sucumbir à posição masoquista encenada na fantasia. O traumático choque de linguagem que faz do mamífero homem um sujeito falante e faltante, lhe concede uma única certeza na vida: sua morte. O saber sobre a morte, trabalho a ser depreendido com os significantes, é um jogo onde de qualquer jeito que se jogue, sempre se perde. O sujeito começa a construir respostas ao enigma do desejo do Outro, tentando elaborar um mito, romance familiar, que obture o buraco (trou) irreparável do traumatismo. O recalque originário fixa o trauma (proibindo seu acesso à consciência) e a energia do psiquismo deve ser gasta para sustentar a pressão posterior exercida sobre os derivados do representante psíquico. Quando há uma falha nesse processo defensivo, o sujeito passa a carregar pedras na cabeça de um lado a outro de seu pequeno povoado, tentando construir um barraco, como é o caso de D. Joaquina, atendida no serviço de saúde mental. Na psicose, o sujeito não está representado por um significante mestre e o trabalho do delírio como uma reconstrução do mundo - no caso, um barraco para morar – figura como um tonel das Danaides Na construção da lógica significante, o pai é responsável pela articulação do desejo à lei e que interdita o gozo materno. Com isso, o acesso à leitura e a escrita permitem ao sujeito manipular com destreza os significantes, mas para cometer tropeços, como Ana copia meu aviso no meu bloco da sala de espera diante de um atraso da sessão: ‘deixe seu recado, se não puder ajudar’ (no aviso: aguardar). Ana, quer me mostrar que aprendeu a escrever e percebo que, capturada pelo simbólico, formula um pedido a mais ancorado no gozo recalcado. Da fantasia nada se fala, só vergonha e culpa pelo caráter do traço perverso que escapou ao recalque; do sintoma, uma brecha para a interrogação em razão de sua permanente satisfação metafórica que atinge o corpo e por vezes, faz sofrer. Lacan aponta os dois extremos da operação analítica: O recalcado primordial como um significante e o que se edifica por cima para constituir o sintoma, um andaime de significantes. Recalcado e sintoma como homogêneos e redutíveis a funções de significantes. Na outra extremidade, ele coloca a interpretação – idêntica ao desejo. No intervalo, a sexualidade, que se impõe desde muito cedo na rede da constituição subjetiva. Ernesto procura um analista porque se diz ‘traumatizado pelo destino’. Sua queixa: as mulheres com quem ele viveu sempre lhe deixaram a marca da insatisfação e um sentimento de abandono de si mesmo. Era ‘todo’ para elas, totalmente disponível e no fim do relacionamento, sobrava um desespero intolerável, com crises de angústia. Em todas as análises anteriores os analistas se identificaram ao papel do supereu e contribuíram com a repetição. Desta feita, a análise torna-se possível por uma manobra onde a analista sai da cena imaginária e remete o sujeito à pergunta pela fixação ao objeto materno (renovada por exemplo, com os nomes das parceiras, suas atribuições intelectuais). Portanto, quando as mulheres se tornam sintomas, mal estar, ele busca um modo de se desembaraçar com muita urgência. Quando um sujeito procura um analista, ele apresenta seu sintoma como algo imposto, enigmático, que pensa ter um laço associativo com um trauma passado em sua constelação familiar. O que ele não sabe é que o movimento mesmo da transferência produz um efeito na inércia do gozo - que lhe servia de resistência ao determinismo histórico - e o impossível de suportar encontra uma nova maneira de lidar com o não sabido. Nesse discurso novo que a psicanálise propõe, o sujeito pode analisar a neurose infantil, reconhecendo as identificações ao Outro materno e sua relação ao desejo na fantasia. O sintoma não é somente uma mensagem a ser decifrada pois reúne os códigos de acesso aos significantes do recalcado, mas uma maneira eficaz do sujeito organizar seu gozo, pois é efeito de simbólico no real. O real, impossível e que só se pode ter acesso por pedaços, “caroço em volta do que o pensamento enfeita. Mas seu estigma é não se ligar a nada. É pelo menos assim que concebo o real e suas pequenas emergências históricas” (Seminário Sintoma - 16/03/1976). Os analistas sabem bem o destino a dar ao sintoma na análise para liberar o significante traumático do gozo que, por uma espécie paradoxal de satisfação, faz sofrer. O sintoma, no entanto, é uma verdade particular mesmo estando inscrito na ordem cultural. Mas será que os analistas sabem o que fazer, ou o que dizer do trauma exterior, catástrofes que atingem toda uma população? Teríamos como contribuir para encontrar um destino para o sem sentido traumático, inassimilável que assola nossa época? Freud estava advertido sobre os vínculos sociais e tinha uma postura política pacifista. Sua obra ultrapassa a clínica quando estende sua teoria aos fenômenos culturais e fantasias humanas inconscientes. Foi um contestador de sua época e afirmava que a civilização protege a espécie humana da extinção pela pulsão de destruição. Hannah Arendt afirma, em Responsabilidade e Julgamento: “ o maior mal perpetrado é o mal cometido por Ninguém, isto é, por um ser humano que se recusa a ser uma pessoa. Dentro da estrutura conceitual dessas considerações, poderíamos dizer que o malfeitor que se recusa a pensar por si mesmo no que está fazendo e que, em retrospectiva, também se recusa a lembrar o que fez, realmente deixou de se constituir como alguém. Permanecendo teimosamente um Ninguém, ele se revela inadequado para o relacionamento com os outros que, bons, maus ou indiferentes, são no mínimo pessoas”. Lacan encerra o Seminário XI fazendo referência à relação da psicanálise com a ciência e como os traços do objeto a - olhar e voz - aparecem de modo explosivo na mídia; mas aponta o essencial no drama do nazismo: a captura monstruosa dos sujeitos pelo que chama de Deus obscuro, o sacrifício ao desejo do Outro – uma posição perversa que a fantasia tão bem traduz, mas que exclui a intervenção essencial na psicanálise: a metáfora paterna. Aracaju, 4 de outubro de 2004 albabreulima@hotmail.com

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