quinta-feira, 29 de novembro de 2012

"somos todos sujeitos trágicos"

A ética da escolha e sua dimensão trágica Alba Abreu Lima O que a psicanálise tem a aprender com a tragédia? A tragédia empresta seu cenário às muitas disciplinas das ciências humanas, constituindo-se como campo de produção teórica a partir da análise dos significados e especulações sobre a história da família e da condição humana, mesmo tendo perdido sua intensidade cênica. Freud, em sua clínica, investiga a condição de assujeitamento do analisante ao desejo inconsciente e faz em sua obra, inúmeras referências às tragédias. Lacan, no Seminário VII, indica a tragédia como paradigma do desejo humano como desejo do Outro e a dimensão ética da escolha do sujeito: “agiste conforme o desejo que te habita?”. Trágico e história da tragédia A tragédia emergiu numa condição política, social, cultural e religiosa específica no século V a.C. e manteve sua presença até o declínio da antiga cultura greco-romana. A Poética de Aristóteles, primeiro teórico da tragédia, aponta os dois conceitos que definem o gênero: a mimese, imitação da palavra e do gesto, despertando no público piedade e temor; e a catarse, efeito que proporciona o alívio dos sentimentos. Para ele, a tragédia é uma forma de um ensino ético porque põe em cena a fragilidade humana frente ao acaso. Durante o período medieval, o gênero desapareceu e alguns teóricos atribuem à falta de subjetividade na cultura européia de onde resultariam a tensão e o paradoxo, elementos decisivos na tragédia. {no entanto, existe uma discussão acerca dessa falta de subjetividade na idade média, se a arte profana era proibida, a própria igreja se apossou do teatro em seus autos de fé. Podemos dizer então que não tinha poder}. A decisão trágica se dá sempre entre os desígnios dos deuses e os projetos ou paixões dos homens. Exprime o debate entre o passado mitológico e o presente da polis. Nesse sentido, nem mesmo poderíamos considerar trágica a saga de Jesus Cristo, diz Gumbrecht em seu ensaio “Os lugares da tragédia”, pelo motivo, justo, que ele apresenta em sua morte: redimir a humanidade do pecado original. Na Renascença, surge, apesar da objetividade do mundo cristão, uma cultura que garante o lugar do homem e sua subjetividade. Hamlet, ícone do homem moderno, apresenta a tragédia do desejo, ao colocar o homem no centro do mundo: ”Que obra prima é o homem! Como é nobre em sua razão! Como é infinito em faculdades! Em forma e movimentos, como é expressivo e maravilhoso! Nas ações, como se parece com um anjo! Na inteligência, como se parece com um deus!”. No Século de Ouro espanhol, a tragédia foi cultivada por grandes figuras da literatura, como Pedro Calderón de la Barca, que escreveu “A Vida é Sonho” considerada a obra-prima do teatro espanhol do século XVII, exemplo por excelência do teatro barroco, tomando por núcleo temático a fugacidade e o ilusório da vida, ligando-o ao problema do livre arbítrio e dos bens transitórios na existência humana. É considerada a versão cristã do Édipo, no sentido em que o herói trágico é portador de um destino adverso destrutivo aos outros e a si mesmo, que o faz desaparecer para que não se cumpra o vaticínio. No caso do Édipo, o oráculo se cumpre, no segundo, o herói vence o destino pela via da mulher que representa o amor e a compreensão de que a vida é transitória como um sonho. Na obra, o incesto é substituído pela morte da mãe, causada pelo herói no nascimento, o assassinato do pai é substituído por uma insurreição militar e a profecia se dá por meio de duas fontes: o sonho da rainha e o saber astrológico do rei. A tragédia francesa do século XVII recuperou os modelos gregos e alcançou grande profundidade psicológica com as obras de Corneille e Racine. No norte da Europa no século XIX, Ibsen, Strindberg e Tchekhov, escreveram peças em prosa e os temas mais adaptados às inquietações contemporâneas. O termo trágico adquire depois disso, um sentido generalizado, fora de sua ligação a uma forma literária, para designar a condição humana. Peter Szondi, em seu “Ensaio sobre o trágico”, diferencia a criação poética da tragédia e a filosofia do trágico, que surge com Schelling, Hölderlin e Hegel, que se ocuparam da cultura grega. Ele diz: “Sendo um ensinamento acerca da criação poética, o escrito de Aristóteles pretende determinar os elementos da arte trágica; seu objeto é a tragédia e não a idéia de tragédia”. É o fator dialético o denominador comum que perpassa todas as definições do trágico. Em todas as tragédias o que está presente é a construção dialética da autodivisão, da transformação de algo em seu oposto, a contradição e o conflito do sujeito, do vencedor e vencido. Literatura e psicanálise Aproximar a psicanálise da literatura é o que faz Ricardo Piglia em seu ensaio "Somos todos sujeitos trágicos" (in Formas Breves, 1999). Ele propõe a psicanálise como uma das formas mais atrativas da cultura contemporânea porque revela uma épica da subjetividade numa versão violenta e obscura do passado pessoal. O atrativo seria baseado na aspiração a uma vida intensa porque no âmago do nosso ser, é o que Freud revela, experimentamos um grande drama - desejo de sacrificar nossos pais, como Hamlet ou filho abandonado de reis, como Segismundo - um lugar onde somos sujeitos extraordinários. Na literatura, a tragédia estabelece sempre uma tensão entre o herói e a palavra enigmática dos deuses. A questão sobre O que o Outro quer de mim? Seria equivalente na tragédia à: O que meu Deus me reserva como destino? Dizer que o sujeito é trágico não é dizer que tudo está determinado desde antes, mas a rota que ele escolhe para se salvar da ruína pode se tornar seu aniquilamento. O herói grego realiza seu desejo como desejo do Outro e aceita a responsabilidade de avançar até a queda final. A escolha o conduz até às últimas conseqüências: a imolação do herói é necessária para a preservação dos valores da comunidade. Na lógica da psicanálise, desejar é buscar o que se perdeu na operação da castração, o que quer dizer que quando se escolhe a alienação significante, a história geracional, perde-se uma parte do seu próprio ser que é irrecuperável. É o modo como o sujeito entra na tragédia por optar pela cadeia significante, passa a ser mortal. No drama da passagem para a existência simbólica não há nada senão vida conjugada com morte: essa a dialética freudiana. A separação do objeto materno é vivida como uma morte, desamparo. Freud construiu, a partir das tragédias de Sófocles e Shakeaspeare, metáforas clínicas da existência humana e embora heróicas, é como homem comum que ele as efetiva, diz Lacan. Cada romance familiar carrega o enredo de uma trama onde o sujeito simboliza seu encontro com o real. O vazio central tem nome de castração e as modalidades subjetivas são as escolhas que o sujeito faz no confronto com a falta. Com sorte, o sintoma aparece como uma invenção metaforizada para fazer borda ao vazio e permitir ao sujeito um ordenamento do desejo contido na fantasia. O romance familiar na tragédia revela ao final que o personagem familiar era, desde o início o inimigo. Esse desconhecido buscado pelo herói trágico se origina naquilo que Freud chamou de O estranho. Isso significa dizer que o ‘inimigo’ que ele tanto procura está no interior dele mesmo, nas palavras de édipo: “Ah! Citéron! Porque não me mataste? Assim eu não teria mostrado aos homens todos, quem eu sou!”. Nada mais trágico para o sujeito desvelar que o mais terrificante provém de sua própria profundeza. O Rei Édipo procura os assassinos de Laio temendo que eles se tornem seus próprios assassinos e encontra a si mesmo. Aquilo que Freud descreveu como recalque é o que faz de Édipo um herói tanto psicanalítico como trágico, diz Rosset, em “A lógica do pior”, porque ele interroga uma exterioridade acerca de um tema que não concerne senão à interioridade. Ele afirma: “O mecanismo do recalcamento tem esse efeito de reunir o estranho e o familiar. É a noção moderna para designar o mecanismo dos trágicos gregos, exclusivo de toda força exterior ao homem – tal como a idéia de destino – afirmador de uma força interior e silenciosa, capaz de todos os terrores e todas as alegrias acessíveis àquele que dela está investido”. De tudo que está próximo do homem, nada é tão terrível como o recalcado desconhecido que se agita dentro dele. A psicanálise interroga sobre esse mecanismo que está excluído da consciência, mas que dispõe de energia para se manifestar inesperadamente e por isso, aterroriza. Querer saber sobre o enigma do desejo, essa é a proposição que move Édipo e os sujeitos em análise. Clínica – a ética trágica Na neurose trata-se de uma construção singular do muro contra o gozo que o analista tem acesso aos pedaços, verificando os caminhos da formação dos sintomas e os materiais aos quais o sujeito recorreu para encontrar o prazer em sua fantasia. Verificamos freqüentemente na clínica que o sujeito tem os meios de sair da repetição e não consegue pela necessidade de castigo. E como acontece na psicose, onde o sujeito não tem como recorrer ao Coro - "Melhor seria não haver nascido..." - que limita o campo da existência humana? Ou Segismundo, em A vida é sonho: “que delito cometi contra você nascendo; ainda que se nasci, já entendo o delito que cometi: bastante causa teve vossa justiça e vigor, pois o delito maior do homem é haver nascido”. Podemos afirmar que o sujeito fragmentado da tragédia é o neurótico, porém fatalista seria o psicótico, pois de sua posição de objeto não cabem as dúvidas neuróticas: dormir, sonhar ou morrer? O fatalismo indica numa crença no destino: o futuro de todo ser humano está predestinado e é imutável, fixado, sem possibilidade de alteração. Como Lucas, condenado em seu destino: aos três anos perdeu a personalidade e não há uma mudança possível. Submerge na relação com o Outro e sua perda acarreta a invenção delirante em lugar da dialética. O neurótico tem a escolha ética de alienação na cadeia significante, de perda do objeto e conseqüentemente a sentença de morte que paira sob sua cabeça e, após a análise, pode decidir abandonar seu posto de herói, aquele da dimensão trágica da vida, para simplesmente ser feliz no acaso, ainda não domesticado. BIBLIOGRAFIA Aristóteles - Poética in Os pensadores. SP: Nova Cultural, 2000. Calderón de la Barca, P – La vida es sueño.Buenos Aires: Longseller, 2004. Celso Pereira de Almeida. RJ: Companhia das Letras, 1998. Freud, Sigmund - Obras Completas. RJ: Imago, 1977. Guyomard, P. - O gozo do trágico. Trad Vera Ribeiro. RJ: Zahar, 1996. Julien, P - O estranho gozo do próximo. Trad. Vera Ribeiro. RJ: Zahar, 1996. Juranville, A - Lacan e a filosofia. Trad. Vera Ribeiro. RJ: Zahar, 1987. Lacan, Jacques - Seminário 2: O eu na teoria de Freud e na técnica da psicanálise. RJ:Zahar, __________Seminário 7: A ética da psicanálise. RJ: Zahar, 1988. __________Seminário 11: Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. RJ: Zahar, 1979. Nietzsche, F - O nascimento da tragédia in Coleção Os pensadores. SP: Nova cultural, 2000. Rinaldi, D - A ética da diferença. RJ: Zahar, 1996. Rosenfild, K H - Org. De Filosofia e Literatura: o trágico. RJ: Zahar, 2001. Rosset, C - Lógica do pior. Trad. FJF Ribeiro e Ivana Bentes. RJ: Espaço tempo, 1989.

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